O escândalo gerado pela ampla divulgação da corrupção política no Brasil propiciou ao mesmo tempo densa publicidade do instituto da delação premiada, já largamente praticada em vários países, incluindo a Itália (pentitismo) e os Estados Unidos. Não se pode confundir delação premiada com colaboração premiada. Esta é mais abrangente. O colaborador da Justiça pode assumir culpa e não incriminar outras pessoas (nesse caso, é só colaborador). Pode, de outro lado, assumir culpa (confessar) e delatar outras pessoas (nessa hipótese é que se fala em delação premiada).

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Quanto ao colaborador da Justiça não existe nenhum questionamento ético. A mesma coisa não se pode afirmar em relação à delação, que implica traição, falta de lealdade etc. A traição não é uma virtude, não deve ser estimulada, mas em termos investigatórios pode (eventualmente) ser útil. O modelo eficientista de Justiça na pós-modernidade está mais preocupado com sua eficácia prática que com pruridos éticos. Por isso é que o instituto da delação premiada tem futuro.

Aliás, esse futuro torna-se mais promissor na medida em que se agrava a falência da máquina investigativa do Estado. Quanto mais o Estado é dotado de capacidade investigativa menos necessita da delação dos criminosos. E vice-versa. De qualquer maneira, não sendo possível eliminar radicalmente a delação, há uma série de cuidados e providências que devem cercá-la.

Em primeiro lugar, não há dúvida que a delação pode dar ensejo a abusos ou incriminações gratuitas ou infundadas. A desgraça é que tudo isso vem a público imediatamente, porque o tempo da mídia não é o mesmo da Justiça. A presunção de inocência, lamentavelmente, não vale para a mídia. O tempo que se gasta para divulgar uma notícia hoje (fundada ou infundada, até porque sabe-se que há setores no jornalismo que são enormemente irresponsáveis) é o mesmo que se consome para pronunciar as palavras delatoras.

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Esse quadro é mais preocupante quando se trata de um delator político ou de uma delação com interesses políticos. Os políticos contam com ética própria, interesses específicos etc. O poder é a meta. E para se alcançar a meta (o fim) muitas vezes não se preocupam com os meios. Delação de políticos ou feita por interesses políticos deve ser vista com redobrado cuidado.

No ordenamento jurídico atual há previsão de delação premiada em várias leis: lei dos crimes hediondos (Lei 8.072/1990), lei de proteção das vítimas e testemunhas (Lei 9.807/1999), lei do crime organizado (Lei 9.034/1995), lei de lavagem de capitais (Lei 9.613/1998), nova lei de tóxicos (Lei 10.409/2002) etc. Cada uma com suas peculiaridades. Não existe um regramento único e coerente. É chegado o momento de se cuidar desse tema com atenção, pondo em pauta questões relevantes como: prêmios proporcionais, veracidade nas informações prestadas, exigência de checagem minuciosa dessa veracidade, eficácia prática da delação, segurança e proteção para o delator e, eventualmente, sua família, possibilidade da delação inclusive após a sentença de primeiro grau, aliás, até mesmo após o trânsito em julgado, envolvimento do Ministério Público e da Magistratura no acordo, transformação do instituto da delação em espécie de plea bargaining etc.

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Claro que o correto é o Estado se aparelhar cada vez mais para não necessitar da delação. Mas enquanto isso não acontece, a prioridade deve ser um detalhado regramento desse instituto, para se evitar denúncias irresponsáveis, o sensacionalismo da mídia, o vedetismo das CPIs, o afoitamento de autoridades da Polícia e da Justiça etc. O que não parece suportável é o atual nível de insegurança jurídica gerada pelas delações, que têm produzido efeitos muito mais midiáticos que práticos.

Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito penal pela USP, secretário-Geral do IPAN (Instituto Panamericano de Política Criminal), consultor e parecerista, fundador e presidente do PRO OMNIS-IELF (Rede Brasileira de Telensino – 1.ª do Brasil e da América Latina.