Coragem de quem?

Tem razão o presidente Luiz Inácio Lula da Silva quando diz que falta coragem de muita gente para mudar. E essa falta de coragem é maior exatamente em quem tem hoje uma situação que, para não dizer privilegiada, porque tornou-se uma palavra ofensiva para muitos, é, no mínimo, cômoda. São as categorias que mais têm e mais recebem do erário público as que exercem no Congresso o maior poder de pressão contra as mudanças, a ponto de inviabilizar as reformas pretendidas. Pelo menos no sentido que o presidente Lula prometeu e quer dar às mudanças.

No início do primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso também foi assim. A esperança de um novo tempo que vinha com o real e a derrocada da inflação motivou muita gente a acreditar – incluindo o próprio governo – que o momento era propício à realização de mudanças profundas na Previdência, no sistema tributário, no sistema político, no Judiciário e por aí afora. Passaram-se oito anos de muita luta e conversa jogada fora, a esperança definhou com a ajuda do PT e com o passar do tempo e só renasceu com a campanha paz e amor de Lula, já então três vezes derrotado.

Mais que FHC, o ex-sindicalista jurou realizar mudanças. A cada promessa era aplaudido. Entre os aplaudidores entusiastas e devotados, estavam exatamente aqueles que, ao se iniciar o processo de mudanças – como da outra vez – voltaram-se contra elas: as classes mais abastadas consideram o degrau em que se encontram uma conquista que não pode ser questionada, mesmo ante a evidência de que estão em suas gloriosas conquistas algumas das causas da miséria dos demais. Algo mais ou menos previsível, mas Lula preferia dizer que era só ter vontade política e o milagre haveria de acontecer: empregos aos milhões, um novo horizonte de trabalho, progresso e bem-estar. Agora, pouco mais de meio ano depois, ele já percebeu que não é só vontade política que opera mudança. É preciso ter muita coragem.

Mas coragem de quem? As reformas, explica ele, como sempre quase que didaticamente, mexem muito com a nossa comodidade. Não citou claramente, mas já sabia, naturalmente, que um magistrado que tem coragem de embolsar num só mês mais de R$ 50.000 (o exemplo ganhou as primeiras páginas dos jornais de quarta-feira) terá a mesma coragem para defender o status quo que lhe faz tão feliz. Como esse magistrado sortudo, existem muitos outros agentes do Estado, encastelados nos labirintos corporativos e bem arregimentados dos três poderes, vendo o tempo passar para chegar o bem-aventurado tempo da aposentadoria. Reforma é coisa para os outros. Ou para deixar, como o próprio Lula ironiza, tudo exatamente como está.

É paradoxal os entrechoques que a República vive nos dias atuais, com sem-terra, sem-teto e sem-nada de um lado, e os outros correndo a Brasília para brigar pelo seu quinhão. Lula mesmo observou alguns no discurso que fez para o lançamento do Fórum Nacional do Trabalho, em Brasília. Criticou, por exemplo, os sindicatos que vão às portas das fábricas e lá encontram mais ex-trabalhadores vendendo alguma bugiganga na calçada para sobreviver que trabalhadores associados entrando no local de trabalho. O endereço da luta, hoje, está bem além da reivindicação de 5% de aumento no salário. Deve ser pelo direito de trabalhar de milhões de desvalidos, à margem de qualquer benefício, aos quais a reforma da Previdência pouco diz e só interessa no que se refere às escandalosas diferenças. Foi talvez percebendo isso que a magistratura cancelou sua intempestiva greve nacional. O mesmo deveriam fazer os fiscais da Receita Federal, os funcionários estáveis da própria Previdência e, de forma geral, o funcionalismo público revoltado. Também ali não são os que menos percebem os que mais reclamam.

Mas a coragem maior deverá ter o próprio governo para enfrentar as resistências que já podia prever encontraria pelo caminho. Compete a ele levar adiante seu programa de mudanças, prometido em palanque ao longo de quatro memoráveis campanhas. Coragem (e um pouco de discernimento, para separar pressões justas das abusivas) também deverão ter os congressistas. Sem esse mínimo de coragem, Lula, que disse e repetiu não ter o direito de errar, fará um governo-fiasco. Para nosso azar.

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