Especialista em Educação Patrimonial, a historiadora e professora Clemilda Santiago Neto se dedica ao estudo da cultura africana e à sua inserção no contexto ensino-apredizagem existente nas escolas brasileiras. No bate-papo com a equipe de O Estado, assuntos como cotas, importância da cultura negra na formação do povo brasileiro e inserção do ensino de cultura e história da África no currículo escolar estão entre os tema abordados. Atualmente, a professora trabalha na Secretaria de Estado da Educação do Paraná, como técnica pedagógica.
É inegável que boa parte dos costumes do povo brasileiro são herdados de nossos ascendentes africanos. Na culinária, na língua, nas vestimentas, na música, em todos os aspectos da cultura brasileira estão presentes elementos de origem negra. De que maneira tais aspectos podem ser abordados em sala de aula?
Clemilda Santiago Neto: O diálogo da escola com o modo de vida dos seus alunos permitirá a vivência e potencialização de outros contextos de aprendizagem. As manifestações dramático-religiosas, a música, capoeira, as organizações carnavalescas (afoxés, batucadas e blocos afro), entre outros, são alguns elementos mediadores da reflexão sobre a identidade cultural do negro.
O aprofundamento em uma ou mais linguagens, pela ótica dessas expressões, fará com que tanto o educando quanto o educador realizem, questionem, apreciem e debatam, elaborem e colaborem com a sua realidade. A multirreferencialidade precisa ser praticada na convivência com as diferenças, a busca de novos espaços de interação e afirmação das identidades. O contato com outras fontes de informação e saberes traz questionamentos sobre as certezas, enriquecendo o contexto do indivíduo, a vida. É nesse momento de interação que se dá a criação onde a subjetividade humana procura a materialização de um mundo mais tolerante, justo e plural.
Muito tem se falado sobre a exclusão social de negros, índios e outras minorias no Brasil. Ela existe mesmo? De que maneira o trabalho de educação e esclarecimento enfatizando a cultura negra pode dirimir tais características, indesejáveis em nossa sociedade?
Clemilda: Em geral, este tema é um grande silêncio na sociedade brasileira, pois, como bem alertou o ideólogo Gilberto Freire, vivemos o mito da democracia racial.
Este mito se sustenta pela aparente ausência de preconceito racial e pela inexistência de uma segregação legal no País. Aqui não temos um apartheid escancarado em razão da cor, com escolas para negros e para brancos, por exemplo. Mas temos um genocídio velado contra os negros, existem pesquisas e documentos que comprovam, entre outros crimes, o extermínio de crianças e jovens negros, a esterilização das mulheres desta raça e o preconceito em campanhas publicitárias e até mesmo no atendimento hospitalar. Os negros sofrem mais com agressões policiais, prisões arbitrárias e torturas. Esses atos resultam em uma diminuição da expectativa de vida do negro, que é em média cinco anos menor que a do branco, chegando, em regiões do norte e nordeste do País, onda há diferenças de até 12 anos. A exclusão gera impactos perversos, como a degradação humana, a marginalização e a fragilidade da democracia brasileira. Existe um profundo abismo social no País e ele deve ser revertido. É prematuro dizer que vivemos numa sociedade democrática quando os direitos de cidadania não abrangem a todos. Para cumprir essa importante tarefa, os educadores deverão colocar em prática a concepção de educação proposta por Paulo Freire, autor da obra Pedagogia do Oprimido, Conscientização, Educação como Prática de Liberdade, entre outras. Paulo Freire afirma que a pedagogia do oprimido tem de ser forjada com ele, e não para ele, enquanto pessoa ou povo, na luta incessante de recuperação de sua humanidade. A base desta pedagogia é o diálogo, que é o principal instrumento para a educação como prática de liberdade. O diálogo é essencial para quem exerce o papel de educador-libertador. O diálogo transforma as relações de poder. O verdadeiro diálogo ocorre quando os agentes em relação se comprometem com o pensamento crítico, que só se concretiza quando há humildade e esperança. Na prática escolar, o diálogo começa na busca do conteúdo programático, quando o educador está preparando a abordagem dos seus encontros com os alunos. Neste momento, os professores deverão privilegiar temas, que no caso, sejam significativos para a compreensão da história da África, da cultura afro e da situação do negro no Brasil, articulá-los aos pressupostos da Pedagogia do Oprimido.
A criação de cotas para negros e índios nas universidades públicas brasileiras segue o modelo norte-americano de ação afirmativa. Muitos estudiosos criticam tais medidas, pois afirmam que elas foram criadas para uma outra realidade, onde as características do preconceito são diferentes, mais acirradas e até mesmo violentas. Será que as cotas realmente atendem às demandas da sociedade brasileira, ou consistem em uma ação paliativa que acirrariam eventuais atritos existentes?
Clemilda: De onde vem tanta discussão sobre a questão de cotas, racismo, desigualdade racial na atual conjuntura política brasileira? O acontecimento que tornou visível a discriminação racial no Brasil, seguramente, foi a Conferência Internacional de Durban (África do Sul) contra a discriminação racial, patrocinada pela ONU em 2001. Não que o assunto fosse novo, pois desde 1931, com a Frente Negra Brasileira, a discriminação racial contra o negro é denunciada de forma organizada. Os movimentos negros tiveram novo alento a partir do fim da ditadura militar (final da década de 70), a mesma ditadura que retirou o quesito cor-raça do Censo, para esconder a superexploração a que o negro é submetido na nossa pátria mãe gentil. No entanto, foi na Conferência de Durban que a delegação brasileira levou a proposta de cotas para negros nos processos de seleção ao ensino superior. Uma aliança entre ONGs, movimentos negros e segmentos no interior do governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, particularmente no Ministério da Justiça, permitiu que esse tipo de proposta fosse majoritário na delegação brasileira. Curiosamente, encontram-se posições ardentemente favoráveis e contrárias a esta linha de ação reparatória aos negros brasileiros tanto na direita quanto na esquerda. No entanto, nos movimentos negros ela é maioria. O que causa espécie é como surge uma oposição emocionalmente viva e pouco fundamentada sobre este tipo de proposta de inclusão social do negro. Pessoas que não leram sobre o assunto, não se informaram e são radicalmente contra! Inclusive colegas nossos de academia. Estão acontecendo discussões sobre as formas de reparação e compensação dos danos que a discriminação racial fizeram e continuam a fazer aos negros brasileiros, quase metade da nação brasileira (45%, sendo 5% de pretos e 40% de pardos, segundo o Censo IBGE 2000), e finalmente, a discriminação racial torna-se tema nacional. Então, mesmo que não seja aprovada em todo o País, pelo menos a proposta de cotas para o ensino superior já está cumprindo o papel de problematizar a situação degradante a que está exposto o povo negro brasileiro.
Que componentes da cultura africana, presentes em nossa realidade, são utilizados para a abordagem do tema cultura negra em sala de aula?
Clemilda: Podemos utilizar estratégias e práticas educativas a partir de ações concretas na escola e na comunidade, utilizando como instrumento a história da África, dos africanos, a cultura negra no Paraná e no Brasil, levando ao conhecimento de nossos alunos também a história e a performance de alguns ritmos, danças como o lundu, a capoeira, o maculelê, o samba, o hip-hop, a dança dos orixás, jogos como o ntxuva (xadrez africano), a arte em esculturas africanas, pinturas africanas, máscaras africanas, brincadeiras (boi de mamão), a congada, etc.
É possível abordar questões acerca da participação da cultura negra na formação do caráter do povo brasileiro nas diversas disciplinas? De que maneira?
Clemilda: Poderemos introduzir nos currículos das escolas de ensino fundamental e médio a cultura negra, a partir da música, do trançado dos cabelos e da indumentária produzida pelas entidades do movimento negro organizado, em todo o Estado do Paraná, que quando chamado colabora prontamente, e trabalhando, além da musicalidade, a oralização da cultura ancestral, educação corporal, a mulher brasileira, ecologia, teatro, formas de espiritualidade negra, preconceito e discriminação racial.