Marta Morais da Costa (PUCPR/UFPR)
O que fazem os professores para conquistar leitores? Elaboram por vezes mirabolantes atividades – burocraticamente divididas em motivadoras, mantenedoras ou finalizadoras – que impedem de perseguir, e atingir, o efeito de sedução da palavra escrita no texto literário. Procuram na exterioridade do texto o que não está lá. Substituem o ato de ler pelo ato de fazer, trabalhando na periferia da questão textual.
Como fazer, então, para tratar de maneira pertinente a leitura literária? Em primeiro lugar, não custa lembrar que ler é trabalho, ofício, artesanato do intelecto e da sensibilidade. O prazer advém do esforço, da construção do sentido, da descoberta. Em segundo lugar, cumpre proceder a uma desintoxicação da má pedagogia e da tradição escolar. Que tal ler Como um Romance, de Daniel Pennac, para questionar o trabalho docente com a leitura literária? O decálogo que ele propõe merece alguma reflexão.
Como sabemos, nem os mandamentos das leis divinas – em que esta tábua doutrinal se espelha – são impermeáveis à transgressão, nós, professores, reconhecemos que nossa profissão implica uma incisão orientadora e formadora mas, de certa maneira, contábil, de vez que somos sistematicamente cobrados a apresentar uma produção em curto prazo e submetida a controles exigentes. Temos que apresentar resultados, contrariando uma formação mais voluntarista, prazerosa e sem cobranças como prevê o decálogo. No entanto, essas leis de Pennac se constituem em poderoso chamariz. Como conciliar o conflito entre o utilitário e o descompromisso?
O leitor em formação necessita de nossa orientação. Ela deve ser dirigida por uma postura que privilegie o texto, que afete e mobilize o leitor. O discurso literário, por natureza, apresenta alta voltagem catalisadora. Como mobilizar o leitor para viver essa natureza?
Primeiramente, cabe ao professor fazer sobressair no texto a sua dicção, isto é, a sua natureza literária, o desvio que a literatura naturalmente impõe à linguagem cotidiana. A concretude dos vocábulos enquanto letras, desenho na página em branco. A liberdade de contrariar as leis da economia lingüística e amontoar advérbios, adjetivos, sons, repetições e redundâncias. A brincadeira com a palavra, desconstruindo-a para reconstruí-la mais intensa, numa simbiose entre o sentir a paixão e o dizê-la ardorosamente. Reconhecer na escrita valores inusitados, encontrar no mundo analogias inesperadas que se concretizam em metáforas plurissignificativas.
Não se trata, porém, de valorizar apenas o dizer bonito. Voar nas asas da palavra pode nos trazer de volta à terra. Sou capaz de apostar que muitos de nós se questionam sobre a possibilidade de valorizar a riqueza do discurso literário com as crianças. Quantos não adotam a analogia entre o tamanho da criança com o proporcional tamanho do cérebro e da percepção? Quantos não minimizam as potencialidades da criança?
Ó homens (e mulheres, obviamente) de pouca fé!
Há procedimentos indispensáveis para que o leitor mirim possa usufruir da beleza da literatura. O primeiro deles é, sem dúvida, de total responsabilidade do professor: a escolha do texto. Fica muito difícil de perceber a riqueza da linguagem da literatura com a história do macaco sabido, da menina desobediente, do menino fujão, em narrativas e poemas encomendados para lições de moral e comportamento. A qualidade literária de um texto exige o trabalho criativo do leitor, a interrogação constante, as perspectivas conflitantes e em expansão. O professor precisa dominar sua área de conhecimento: saber escolher livros é atribuição fundamental da profissão. Não se pode delegar este ato a qualquer um, omitindo-se irresponsavelmente. Ana Maria Machado diz, sem papas na língua: "Quem não gosta de ler não tem nada que ficar escolhendo livros para impingir aos outros".
Fica mais uma vez salientada a imprescindível qualidade de leitor para qualquer professor. Não o leitor exclusivo de textos redundantes, de apenas jornais, revistas ou livros técnicos, de textos transparentes e esgotáveis. Mas o leitor que atua com conhecimento do acervo editorial e da biblioteca de sua escola. Capaz de transitar entre estantes e volumes com familiaridade. Enfim, esta é a aptidão que ele quis conquistar com seus estudos e seu diploma.
Um segundo procedimento passa pela convicção de que somos responsáveis pela educação da sensibilidade artística e do senso de percepção de nossos alunos. Esta é uma aquisição gradual, contínua e indispensável. Ser primário na observação, ser tolhido na interpretação, ser incapaz de articular as leituras entre si são defeitos que evidenciam o fracasso na formação do leitor e impedem que ele venha a compreender a complexidade do texto literário.
O papel de mediador entre o livro e o leitor mirim é um dos mais gratificantes do desempenho docente. A intervenção, sem abuso e sem autoritarismo, aplaina e sinaliza a estrada do leitor em formação.
Um terceiro procedimento tem de ser aprendido com a literatura. A quantidade e variedade de textos significativos ensinam por si mesmas. Não posso querer ser um agudo e perspicaz leitor de literatura se leio pouco, textos repetitivos e livros sem qualidade. Este princípio vale para qualquer leitor, não importa a idade. O exercício faz o mestre. Se não me deixo embeber pela literatura, vou usar como muletas pedagógicas as atividades, cuja rotina, redundância e quantidade acabam por desviar e distorcer a leitura literária.
Enfim, tenho que acreditar que se a literatura não salva o mundo, pode salvar o humano no homem. E este não é um mau começo.
Aviso ao leitor: Retomei e refiz aqui alguns textos e reflexões do passado. As intenções continuam, porém, as mesmas.
