A comunicação imediata ao Juízo Criminal da prisão em flagrante de qualquer cidadão é exigência constitucional, conforme cláusula pétrea do artigo 5.º, inciso LXII, da Constituição Federal, nestes termos:
?… a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada…?.
Outra cláusula pétrea, a do artigo 5.º, inciso LXV da Constituição Federal, impõe que a prisão ilegal seja relaxada pelo Juiz Criminal, relaxamento este que será efetivado, obviamente, na primeira oportunidade em que o Magistrado tomar ciência da prisão em flagrante, qual seja, na sua comunicação ao Juízo Criminal:
?… a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária…?.
Com lastro nestes dois preceitos constitucionais acima transcritos, a jurisprudência majoritária criou o ?instituto? da ?Homologação da Prisão em Flagrante?, confeccionada pelo Juiz Criminal nos autos de comunicação da prisão, em singelo modelo-padrão no qual o Magistrado analisa a legalidade do ato (até então administrativo) de cerceamento da liberdade (art. 302, I, II, III e IV, do CPP Flagrantes Próprio, Impróprio e Presumido), bem como a observância das garantias constitucionais e legais do preso provisório (art. 5.º, incisos XLIX LXIII, LXIV, da CF e Lei 7210/84) .
Ao Ministério Público, posteriormente, como praxe, somente é dada ciência da referida Homologação da Prisão em Flagrante.
Todavia, muitos agentes públicos, servidores do povo nos foros criminais, restringem as suas atuações, quando da comunicação da prisão em flagrante, somente à análise da legalidade da prisão, ou seja, efetivam o pensamento de que a manutenção da prisão em flagrante estaria legitimada por força da simplista homologação supracitada, até o trânsito em julgado de eventual sentença condenatória.
A prisão em flagrante, para estes operadores do direito criminal, seria espécie autônoma de prisão cautelar, subsistindo, como já se disse, do momento do cerceamento da liberdade até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, desde que, obviamente, não seja pleiteada pelo preso e deferida pelo Juiz, com parecer do Ministério Público, a sua liberdade provisória, com ou sem fiança.
Estes agentes públicos, nesta conservadora visão, autêntica efetivação do ?movimento da lei e da ordem? no processo penal, somente atuariam na verificação da presença dos dois Requisitos/Pressupostos cumulativos (Fumaça do Bom Direito Indícios de Autoria e Materialidade Delitiva) e algum dos quatro Fundamentos alternativos (Perigo da Liberdade – Garantia das Ordens Pública e Econômica, Conveniência da Instrução Criminal e Assegurar a Aplicação da Lei Penal) para a Prisão Preventiva, caso fossem provocados pelo preso em flagrante, formalmente, através de Pedido de Liberdade Provisória.
A liberdade provisória somente há de ser concedida, imediatamente após a comunicação da prisão em flagrante, se pleiteada pelo preso, tratando-se de matéria de advocacia, vociferam estes ?pobres de espírito jurídico?. O ônus da prova da ausência das hipóteses para a decretação da prisão preventiva do preso em flagrante seria do próprio preso, obrigado a provar a sua não periculosidade para o processo ou para a sociedade. Trata-se de entendimento retrógrado, sectário, cômodo, inconstitucional (fere cláusulas pétreas) e ilegal (fere o comando do artigo 156 do Código de Processo Penal ).
Sempre é importante lembrarmos uma cláusula pétrea, contida no artigo 5.º, inciso LVII, da Constituição Federal, exaustivamente citada nas faculdades de direito e propositalmente esquecida por muitos alunos quando do ingresso no Ministério Público ou na Magistratura, nestes termos:
? … ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória…?.
Ademais, estatui o artigo 5.º, inciso LXVI da Constituição Federal, nestes termos:
?… ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança…?.
Concedendo eficácia ao comando constitucional supracitado, o Código de Processo Penal assim proclama, no seu artigo 310, efetivando autêntica imbricação entre os institutos da Prisão em Flagrante, Prisão Preventiva e Liberdade Provisória:
?…Quando o Juiz verificar pelo auto de prisão em flagrante que o agente praticou o fato, nas condições do art. 19, I, II e III, do Código Penal, poderá, depois de ouvir o Ministério Público, conceder ao réu liberdade provisória, mediante termo de comparecimento a todos os atos do processo, sob pena de revogação.
Parágrafo único: Igual procedimento será adotado quando o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, a inocorrência de qualquer das hipóteses que autorizam a prisão preventiva (arts. 311 e 312)?.
Portanto, diuturnamente, operadores dos foros criminais, alguns por estarem convictos de que se trata de matéria de advocacia pleitear a liberdade provisória, outros por literal falta de tempo e a grande maioria, por mero comodismo, negam vigência aos preceitos contidos nos artigos 5.º, inciso LXVI, da Constituição Federal e 310, parágrafo único do Código de Processo Penal, quando mantém preso um cidadão autuado em flagrante analisando somente a legalidade do ato, omitindo-se quanto à fundamentação da hipótese concreta para a decretação de sua prisão preventiva.
Esta postura profissional, impregnada pela ideologia do ?movimento da lei e da ordem?, quer usar ?cegamente? a prisão cautelar como mecanismo de punição antecipada, efetivando um grave constrangimento ilegal na liberdade dos presos em flagrante, principalmente da população carente de recursos financeiros para contratar advogado (lembre-se que o defensor dativo ou a assistência judiciária somente é nomeado, em regra, a partir do interrogatório judicial dias ou até meses após a prisão em flagrante).
O que se visualiza cotidianamente são cidadãos pobres, em regra negros, mantidos no cárcere por dias, até meses, sem qualquer fundamentação quanto à presença dos Requisitos/Pressupostos e Fundamento para as suas Prisões Preventivas, fundamentação esta que é dever dos operadores dos foros criminais, agentes públicos estes que abusam de seus poderes quando singelamente ?homologam? o auto de prisão em flagrante sem se manifestarem acerca do parágrafo único do artigo 310 do Código de Processo Penal.
Diante desta realidade lastimável, quando o Juiz criminal, ao receber a comunicação da prisão em flagrante, somente ?homologá-la?, analisando apenas a sua legalidade, deve, repita-se, está obrigado o Promotor Criminal a requerer vista dos autos para manifestação acerca do parágrafo único do artigo 310 do Código de Processo Penal.
O Promotor deve tomar duas atitudes logo após a análise da legalidade da prisão em flagrante, norteando-se pelas disposições da Constituição Federal e do supracitado artigo 310, parágrafo único do Código de Processo Penal:
1) – Requerer a concessão da liberdade provisória do preso em flagrante se inexistir algum dos dois requisitos cumulativos para a prisão preventiva (indícios de autoria e materialidade delitiva) ou, havendo o Fumus Delicti, não ser necessária a prisão preventiva com lastro em nenhum dos quatro fundamentos alternativos previstos no artigo 312 do Código de Processo Penal (garantias das ordens pública e econômica, conveniência da instrução criminal e assegurar a aplicação da lei penal);
2) – Requerer a manutenção da prisão do cidadão preso em flagrante delito, a partir deste momento lastreada na necessária decretação da sua Prisão Preventiva, posto que se o artigo 310, parágrafo único, do Código de Processo Penal, prescreve que o juiz poderá conceder a liberdade provisória ao preso em flagrante quando ausentes as hipóteses de Prisão Preventiva, logo, por força de interpretação em contrário, quando o Magistrado mantiver a prisão deverá fundamentar a ocorrência da hipótese para a Prisão Preventiva e, conseqüentemente, estará decretando-a explicitamente.
Uma singela leitura do parágrafo único do artigo 310, supracitado, e sua interpretação em contrário, impõe esta última assertiva, qual seja, a necessária conversão fundamentada da prisão em flagrante em prisão preventiva.
Corrobora a referida conversão o que doutrinam os processualistas penais acerca do estado de flagrância delitiva, qual seja, é um estado provisório de cerceamento da liberdade quando o crime ?está queimando?, quando é patente o cometimento de um delito.
Urge salientar que o instituto da prisão em flagrante, modernamente, frente à excepcionalidade da prisão provisória, assume ares de ?sub? cautelar, ou seja, somente subsistirá até a sua comunicação ao Juízo Criminal, quando, então, ou o preso será solto (por força da inexistência de hipótese para a sua prisão preventiva) ou será mantido preso pela decretação da sua prisão preventiva.
Repita-se, basta que se leia e interprete em contrário o parágrafo único do artigo 310 do Código de Processo Penal para que a necessária conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva seja corroborada.
É importante registrar que se defende este posicionamento não somente por puro tecnicismo ou interpretação gramatical simplista da lei, mas, sim, por entender que qualquer cerceamento da liberdade de um cidadão no nosso ordenamento jurídico há de estar legitimado pela ocorrência dos Pressupostos/Requisitos e Fundamento para a Prisão Preventiva, garantia esta que efetiva o único viés que a Prisão cautelar pode assumir: instrumento excepcional de garantia do processo ou da sociedade, não mecanismo despótico para prestigiar a Justiça Criminal, acalmar a ?ira? da imprensa e da população leiga (sedentas por ?punições rápidas e exemplares?), retribuir o mal causado pelo suposto ?delinqüente?, fazer prevenção geral/especial ou antecipar eventual pena privativa de liberdade.
Corroborando o entendimento acima esposado, importantíssimo salientar que o Anteprojeto de Reforma do Código de Processo Penal(1), elaborado por renomados juristas, tais como Ada Pellegrini Grinover, Luiz Flávio Gomes, Antônio Scarance Fernandes, Rene Ariel Dotti, dentre outros, assim propõe, nestes termos:
?Art.310. Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá fundamentadamente:
I Relaxar a prisão ilegal;
II Converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos do art. 312; ou
III conceder a liberdade provisória, com ou sem fiança, nas hipóteses previstas em lei…?(2).
Muitos dirão que a referida conversão da prisão em flagrante em preventiva é demasiada radical, tendo em vista que a prisão em flagrante já seria espécie de prisão cautelar.
Respeita-se a posição doutrinária acima esposada, todavia, não abrimos mão do entendimento derivado da Constituição Federal e do Código de Processo Penal, acima expendido, de que o juiz e o promotor criminal, no mínimo, ao receber a comunicação da prisão em flagrante estão obrigados a se manifestar, fundamentadamente, acerca dos Requisitos/Pressupostos e Fundamento para a Prisão Preventiva do preso, e, conseqüentemente, para a manutenção de sua prisão em flagrante ou conversão em prisão preventiva. É o mínimo que se pode exigir de agentes públicos que devem seguir a Constituição Federal, as leis e, indiretamente, a vontade popular, povo este que expressamente elencou a liberdade como a regra e a prisão cautelar como exceção, esta última, ademais, devendo ser minudentemente fundamentada pelo Ministério Público e Poder Judiciário quando de sua efetivação.
Por fim, cabe rechaçar o argumento de alguns promotores e Juízes criminais de que no momento da comunicação da prisão em flagrante não haveria, ainda, acostados aos autos, elementos suficientes para a aferição da presença ou não de hipótese para a prisão preventiva. Cremos que o argumento tem lastro, todavia, não é empecilho à tese de que o Juiz e o Promotor devam, obrigatoriamente, manifestarem-se, no mínimo, quanto à possibilidade de liberdade provisória por força do artigo 310, parágrafo único do Código de Processo Penal, requerendo, por exemplo, a juntada aos autos, pelo Cartório Distribuidor, escrivão criminal ou familiares do preso, de certidões de antecedentes criminais do preso na Comarca ou Estado do local da prisão (ou de outros Estados da Federação), comprovante de emprego e residência, dentre outras diligências.
Após poucas horas ou, no máximo, após um ou dois dias (lembremos que os Fóruns e Promotorias possuem telefones, fax e Internet), cumpridas as supracitadas diligências e não havendo nenhum fundamento para a decretação da prisão preventiva do preso em flagrante, impositiva será a concessão da sua liberdade provisória de ofício.
Ao contrário, existindo fundamento para a decretação da prisão preventiva do preso em flagrante, deve o mesmo continuar encarcerado, seja, tecnicamente, por força da manutenção da sua prisão em flagrante, seja pela decretação explícita da sua Prisão Preventiva, não importa, o importante mesmo é a manifestação fundamentada do Juiz e do Promotor criminal acerca do porquê da manutenção da prisão, ao invés da simplista ?homologação do flagrante? que, infelizmente, tornou-se praxe nos foros criminais.
Notas
(1) Projeto de Lei 4208/2001 – Altera dispositivos de Decreto-Lei 3689, de 3 de outubro de 1941 Código de Processo Penal, relativos à prisão, medidas cautelares e liberdade, e dá outras providências.
(2) Projeto de Lei supracitado.
Lucas Junqueira Bruzadelli Macedo é promotor substituto em Cianorte-PR, formado pela Universidade Estadual de Maringá-PR (UEM).