Rodrigo Caramori Petry

Contribuição previdenciária dos produtores rurais

A inconstitucionalidade da cobrança da contribuição previdenciária dos produtores rurais e o recente julgamento do STF sobre a Lei 8.540/1992

No presente artigo, vamos trazer alguns breves esclarecimentos sobre a recente decisão do Plenário do Supremo Tribunal Federal na qual foi reconhecida a inconstitucionalidade da cobrança da contribuição previdenciária incidente sobre a receita bruta da venda da produção dos produtores rurais pessoas físicas, como determinada pela Lei n.º 8.540/1992, e que é recolhida em grande parte pelas empresas adquirentes de tais produtos.

A aludida decisão do STF, tomada na análise do recurso extraordinário n.º 363.852/MG gera efeitos apenas para a empresa rural envolvida no respectivo processo e diz respeito apenas à Lei n.º 8.540/1992, mas serve como importante precedente judicial sobre o tema, o que deve animar os produtores rurais (pessoas físicas ou jurídicas) que possuam ações em curso ou que pretendem ajuizar ações com o objetivo de se verem livres do recolhimento da contribuição, além de recuperar os valores pagos indevidamente nos últimos 5 (cinco) ou até 10 (dez) anos.

Porém, recomenda-se cautela aos interessados na discussão judicial, pois em cada caso devem ser avaliados os reflexos jurídicos da inconstitucionalidade da lei, especialmente em vista da continuidade da vigência da Lei n.º 8.212/1991, assim como deve ser verificada a atividade própria de cada produtor (venda interna, exportação, etc.).

Ciente da referida decisão do STF, a União Federal já vem demonstrando preocupação com a perda na arrecadação do tributo declarado ilegítimo, e começa a armar estratégias para tentar reverter o entendimento do Supremo sobre a questão.

A preocupação do governo no caso é injusta, pois com ela se tenta legitimar uma grave contrariedade à Constituição Federal, que já vem sendo denunciada e atacada há muito tempo no Judiciário(1).

Observe-se que a Lei n.º 8.540/1992 é apenas uma das leis que instituíram contribuições sobre a receita bruta da venda de produção rural. Outras leis instituíram o mesmo tipo de obrigação tributária para onerar as vendas dos próprios produtores rurais pessoas jurídicas e também as vendas das agroindústrias.

Em trabalhos publicados anteriormente(2), já tivemos oportunidade de apontar as inconstitucionalidades que a nosso ver afetam todas essas contribuições previdenciárias, instituídas para substituir a tributação da folha de salários por uma tributação adicional sobre a receita das vendas de empresas rurais (produtoras e agroindustriais) e de produtores rurais pessoas físicas.

Agora, já antevendo os possíveis argumentos que a Fazenda Nacional tentará apresentar perante o Supremo com a finalidade de reverter o entendimento favorável aos contribuintes, faremos aqui uma breve exposição que entendemos ajudará a sepultar definitivamente a questão discutida no RE n.º 363.852/MG, e também abrir alguns pontos que ainda não foram analisados pelo STF. Para uma análise mais profunda, recomendamos a leitura de nossos trabalhos já indicados.

Primeiramente, esclarecemos que a contribuição julgada inconstitucional pelo STF guarda semelhança com a extinta contribuição ao Funrural (Lei Complementar n.º 11/1971), mas com ela não se confunde.

A contribuição ao FUNRURAL foi extinta pela Constituição Federal de 1988, quando esta unificou a previdência rural com a urbana. Pouco depois, a Lei n.º 7.787/1989, ignorando tal fato, decretou também a extinção do FUNRURAL. De qualquer forma ainda é comum vermos em artigos e notícias publicados sobre as contribuições dos produtores rurais o uso da expressão “Funrural”.

O que importa compreender é que o legislador ordinário da União Federal, com vistas a substituir a contribuição previdenciária sobre a folha de salários (art. 195, I, “a”, da Constituição) dos empregadores rurais, resolveu criar, por meio de leis ordinárias, contribuições previdenciárias que incidem sobre a receita bruta da venda da produção dos produtores rurais, sejam pessoas físicas ou jurídicas, assim como as agroindústrias. Mas essas contribuições substitutivas “folha-receita” não encontram fundamento constitucional.

Para compreender melhor o tema, observe-se que existem várias contribuições previdenciárias que atualmente substituem a incidência da folha de salários por incidências sobre a receita das vendas dos produtores rurais, especialmente:

i) contribuição cobrada do empregador produtor rural pessoa jurídica, incidente com alíquota de 2,6% sobre a “receita bruta da venda da produção” (Lei n.º 8.870/1994);

ii) contribuição cobrada das agroindústrias, incidente com alíquota de 2,6% sobre a “receita da venda da produção” (Lei n.º 10.256/2001)(3);

iii) contribuição do empregador produtor rural pessoa física, incidente com alíquota de 2,1% sobre a “receita bruta da venda da produção”, e que é em grande parte recolhida pela empresa ou cooperativa adquirentes da produção, ainda que em consignação (Lei n.º 8.540/1992);

iv) contribuição ao SENAR (Serviço Nacional de Aprendizagem Rural), cobrada dos produtores rurais em geral e agroindústrias, com alíquotas de 0,20% e 0,25% sobre a receita bruta da comercialização da produção (Leis n.ºs 8.540/1992, 8.870/1994, 9.528/1997 e 10.256/2001).

A caracterização da inconstitucionalidade dessas contribuições parte fundamentalmente dos seguintes aspectos, que aqui resumimos em breves palavras(4).

Inicialmente, é de se notar que as normas de competência que autorizam a criação de contribuições sociais sobre a materialidade/hipótese “receita” no Brasil são basicamente apenas as seguintes: art. 195, I, “b”; art. 149, §2.º, III, “a”; art. 239; art. 195, III, art. 195, §8o e art. 170, IX cumulado com os arts. 179 e 146, III, “d”, da Constituição.

Essas normas de competência legislativa tributária não permitem a instituição de outras contribuições sociais sobre o mesmo fato (“receita”). Entender em sentido contrário seria negar às normas de competência a função de limitar o poder de tributar. Portanto, qualquer bis in idem tributário sobre a “receita” é inconstitucional, com exceção, é claro, das hipóteses previstas pela própria Constituição.

Diante do exposto, concluímos que as contribuições previdenciárias instituídas sob a forma de incidências adicionais sobre a receita dos produtores rurais e agroindústrias representam a criação de contribuições sociais residuais, porém, violando os limites indicados no parágrafo 4o do art. 195 da Constituição, que assim prescreve:

“Art. 195. […] §4.º. A lei poderá instituir outras fontes destinadas a garantir a manutenção ou expansão da seguridade social, obedecido o disposto no art. 154, I.”

O art. 154, I, por sua vez, prevê:

“Art. 154. A União poderá instituir: I – mediante lei complementar, impostos não previstos no artigo anterior, desde que sejam não-cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados nesta Constituição.”

Ou seja, novas contribuições sociais, adicionais às contribuições já existentes (PIS, Cofins, etc.), só poderão ser criadas pela União Federal por meio de lei complementar, desde que possuam incidência não-cumulativa e, sobretudo, não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos demais fatos geradores e bases de cálculo previstos na Constituição, em especial, os relativos às contribuições sociais discriminadas no art. 195.

Ora, todas as incidências adicionais sobre a receita aqui em estudo e que não se encontram autorizadas na Constituição representam contribuições sociais residuais, mas que não atendem aos limites impostos pelo parágrafo 4.º do art. 195 da Constituição.

De outro lado, o art. 195, §9.º, da Constituição (inserido pela EC n.º 20/1998) não tem o condão de permitir casos de bis in idem sobre a “receita ou o faturamento” afora os já autorizados expressamente pela Constituição (v.g. PIS, COFINS, e outros já indicados).

Note-se ainda que a Emenda Constitucional n.º 20, editada em 15/12/1998, inseriu o §9.º no art. 195, com a seguinte redação: “§9.º As contribuições sociais previstas no inciso I deste artigo poderão ter alíquotas ou bases de cálculo diferenciadas, em razão da atividade econômica ou da utilização intensiva de mão-de-obra”.

Mais recentemente, a Emenda n.º 47, de 05.07.2005, inclusive modificou esse §9.º, inserindo dois novos critérios para permitir a diferenciação de alíquotas e/ou bases de cálculo das contribuições do art. 195, I, quais sejam: i) porte da empresa; ii) condição estrutural do mercado de trabalho.

Mas em nosso entendimento o §9.º do art. 195 da Constituição só pode implicar na eventual diferenciação numérica (quantitativa) da base de cálculo ou da alíquota das contribuições do artigo 195, I.

Jamais poderia servir para liberar o legislador de obedecer aos limites materiais ali discriminados para a determinação da base de cálculo de cada contribuição social, respectivamente: a folha de salários e demais rendimentos do trabalho (…); a receita ou o faturamento; o lucro, sob pena de dar margem ao arbítrio, em prejuízo da segurança jurídica dos contribuintes.

E, finalmente, temos que o art. 149, §2.º, III, da Constituição (inserido pela EC n.º 33/2001) também não tem o condão de permitir casos de bis in idem sobre a “receita ou o faturamento” afora os autorizados expressamente pela Constituição (PIS, Cofins, etc.).

Nesse sentido, observe-se que a Emenda Constitucional n.º 33, editada em 11/12/2001, dentre outras alterações no texto constitucional, inseriu novos dispositivos no art. 149, artigo este que representa a matriz constitucional de competência de todas as contribuições especiais, inclusive as “contribuições sociais” (grupo formado por diversas contribuições, dentre as quais se destacam as incidentes sobre a folha de salários e demais rendimentos do trabalho, sobre a receita, sobre o faturamento e sobre o lucro).

Pela leitura apenas literal dos termos da EC n.° 33/2001, poderia se interpretar equivocadamente que todas as contribuições sociais poderiam em tese passar a incidir sobre a “receita” ou sobre o “faturamento”, o que legitimaria as incidências adicionais sobre a receita da venda da produção dos produtores rurais.

Mas devemos acolher aquele que entendemos como o verdadeiro sentido das palavras do §2.º do art. 149 da Constituição (introduzido pela EC n.º 33/2001), e que a nosso entender se restringe apenas a ampliar a competência para instituição das contribuições sociais Cofins e PIS, tributos estes que já colhem a materialidade “resultado das vendas” (faturamento), e que por força da EC n.º 33/2001 (como acima descrito) ganharam ampliação na sua incidência, para atingir também, com alíquotas ad valorem (percentual), a “receita bruta” entendida como “receita total” da pessoa jurídica.

A análise do RE n.º 363.852/MG pelo Supremo Tribunal Federal não abarcou todos esses fundamentos, mas acreditamos que eventual amadurecimento da questão poderá levar os ministros a se debruçar ainda mais uma vez sobre o tema (especialmente porque o recente julgamento se restringiu à análise da contribuição do produtor rural na Lei n.º 8.540/1992), e, esperamos que os doutos firmem mais uma vez a inconstitucionalidade da contribuição previdenciária a título de substituição “folha-receita”.

Notas:

(1) A propósito, a recente decisão do STF favorável aos contribuintes rurais no RE n.º 363.852/MG não é uma absoluta novidade para nós. Muito antes desse julgamento o Supremo já havia sinalizado pela provável inconstitucionalidade da criação de contribuições previdenciárias em forma de substituição “folha-receita”, especialmente quando analisou a ADIN n.º 1.103-1/DF, que tratou de caso semelhante, envolvendo as agroindústrias em face da Lei n.º 8.870/1994. Nesse caso a inconstitucionalidade da contribuição era ainda mais flagrante, pois a lei não determinava a incidência da contribuição sobre a “receita da venda da produção rural”, e sim sobre o “valor estimado da produção agrícola própria” das agroindústrias.

Tributou-se assim uma materialidade econômica que sequer é mencionada no art. 195, I, da Constituição quando prevê as possíveis bases para incidência das contribuições que financiam a seguridade social.

(2) PETRY, Rodrigo Caramori. Contribuições PIS/Pasep e Cofins: Limites Constitucionais da Tributação sobre o “Faturamento”, a “Receita” e a “Receita Operacional” das Empresas e Outras Entidades no Brasil. São Paulo: Quartier Latin, 2009, pp. 361-388; PETRY, Rodrigo Caramori. A Contribuição Previdenciária sobre a “Folha de Salários” e sua Substituição por Incidências Adicionais sobre as Receitas das Atividades Rurais. In Revista Dialética de Direito Tributário n.º 142. São Paulo: Dialética, julho-2007, pp. 62-73.

(3) Algumas agroindústrias e cooperativas foram excluídas desse regime jurídico especial (vide Leis n.ºs 10.256/2001 e 10.684/2003).

(4) Para aprofundamento sobre o tema, vejam-se nossos trabalhos anteriores, já citados no presente artigo.

Rodrigo Caramori Petry é mestre em Direito Econômico e Social pela PUC-PR. Advogado e Consultor Tributário em Curitiba-PR.
rcp@rodrigopetry.com.br

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