2. Licença de uso de imagem é salário?
De antemão, diga-se que os contratos de trabalho e de licença de uso de imagem são completamente autônomos. Nos primeiros, como visto anteriormente, temos como objeto a relação de emprego e são aplicáveis à tal as normas da legislação trabalhista, que disciplina as condições de trabalho, remuneração, carga horária, obrigações. Nos outros, a relação é de natureza civil e o objeto é a limitação da exploração da imagem do atleta.
Mesmo não restando dúvidas acerca da independência dos dois contratos, é prática bastante comum dos clubes de futebol a vinculação dos pagamentos relativos a exploração da imagem do atleta aos que decorrem do contrato de trabalho, isto é, da prestação de serviços.
O fenômeno começou a ser analisado com mais minúcia após a sentença do juiz Glener Pimenta Stroppa, titular da XX Vara do Trabalho de São Paulo no caso do jogador Luizão. Antes de passarmos à análise do caso concreto, alguns comentários sobre o assunto são necessários.
Com a intenção de reduzir a base de incidência para a aplicação de tributos e contribuições sociais na relação de trabalho, não só os clubes, mas também os atletas – porque nada é feito sem a anuência destes – adotam a postura de justificar (grande) parte da remuneração como sendo relativa a licença de uso de imagem.
Como visto à exaustão, os contratos são totalmente desvinculados e, desta forma, o valor pago a título de licença de uso de imagem não constitui salário, ficando, portanto, excluído da base de cálculo para a incidência de INSS, FGTS, Férias e 13.º Salário. Da mesma forma, tais valores não podem ser utilizados para o cálculo do total da remuneração anual quando da aplicação da cláusula penal pela dissolução antecipada do contrato de trabalho.
Assim, fica fácil compreender que os valores dos salários constantes nas Carteiras de Trabalho e Previdência Social (CTPS) dos atletas raramente refletem seus ganhos reais. Fica fácil compreender, portanto, que a redução do valor nominal do salário – e conseqüente aumento das parcelas relativas à exploração de imagem do atleta – é benéfica a ambas as partes: tanto o clube como jogador recolhem menos impostos ao Fisco. O ardil fica mais evidente pela simples leitura de tais contratos. Normalmente, os atletas constituem uma empresa (pessoa jurídica) com a finalidade específica de negociar a exploração da imagem do atleta e que, via de regra, contam com um único cliente, o clube empregador.
Desta forma o atleta, pessoa física, terá rendimento nominalmente menor, ou seja, o Imposto de Renda, cuja alíquota é de 27,5% sobre salários acima de R$ 2.115,00, incidirá sobre menor base de cálculo. Traduzindo: na carteira, recebe apenas um salário “simbólico” que, muitas vezes, não chega nem a metade dos seus rendimentos reais. O clube, por sua vez, força o atleta a formar uma empresa para que a negociação seja feita entre pessoas jurídicas, o que reduz a carga tributária para cerca de 12%.
Claro, portanto, que os atuais contratos de licença de uso de imagem nada mais são do que meios de mascarar os salários dos atletas.
Esta situação toma proporções ainda mais graves, além de sua evidente ilegalidade, quando se percebe a verdadeira fortuna que os clubes deixam de recolher aos cofres do INSS. A existência de relação de trabalho é fato gerador para a incidência da contribuição à Seguridade Social e os percentuais incidem sobre o valor dos salários dos empregados. Ora, se o salário é menor, a contribuição também o é. O problema, portanto, não restringe-se apenas à relação atleta-clube (empregado-empregador), pois, como visto, possui reflexos muito maiores.
O artifício utilizado pelos clubes, ao nosso ver, constitui-se como clara evasão fiscal, uma vez que os envolvidos utilizam-se de uma manobra jurídica com o simples objetivo de infringir a legislação fiscal após a verificação da hipótese de incidência.
Há que se discutir, com urgência, não somente a ilegalidade da prática, mas, também, as conseqüências diante do ponto de vista do Direito tributário e trabalhista, uma vez que os clubes destinam quase que a totalidade dos rendimentos ao acordo de natureza civil (licença de uso de imagem), deixando percentual irrisório à parte relativa aos salários. A discrepância entre os valores de natureza salarial e os de natureza civil infringe, além do bom senso, o interesse de terceiros e, desta forma, fiscalização mais efetiva da sociedade se faz necessária – inclusive por ser o desporto nacional considerado de elevado interesse social (Artigo 4.º, § 2.º da Lei 9.615/98, com acréscimo da MP 39/2002).
3. Critérios para a valoração do contrato de licença de uso de imagem
Nenhum critério de valoração é aceito de forma unânime. O valor atribuído à licença de uso de imagem deve estar de acordo com a realidade, justamente de modo a evitar fraudes anteriormente mencionadas. Se considerássemos tão somente os dividendos que a correta exploração da imagem de uma estrela do esporte traz a uma entidade, justificar-se-ia a super valorização da imagem sobre o salário, por vezes superior a 80% dos salários. Ocorre, todavia, que a questão não se coloca com tanta simplicidade.
Algumas teorias já foram aventadas, destacando-se três delas. A primeira delas sugere a fixação de limites e valores em lei. Duas críticas são feitas a esta hipótese: impossibilidade de se estabelecer um modelo único em face da abundância de casos concretos, isto é, nem todos os atletas estão no mesmo patamar e pelo fato de que os valores relativos ao uso da imagem dependem diretamente da performance dos profissionais. A imagem não é um valor fundamental, mas, sim, a prestação do serviço e do êxito desta depende aquela.
A segunda teoria toma por base o grau de atividade do atleta, isto é, se ele é famoso ou não, o tempo de exposição, a exclusividade, entre outros. Este modelo até nos parece justo, porém, sua aplicação prática seria dificultada em virtude da ausência de meios de aferição de tais critérios.
Finalmente, a terceira teoria – que nos parece mais justa e racional – leva em consideração o critério econômico, ou seja, uma análise de mercado seria capaz de determinar o valor que o uso da imagem de algum atleta agrega a determinado produto. Pode-se medir, por exemplo, quanto vendia um produto antes da associação do atleta e quanto passou a vender posteriormente. A diferença seria o valor agregado, que é passível de mensuração econômica.
Independentemente dos valores, certo é que os valores referentes a licença de uso de imagem devem refletir corretamente os valores de mercado e, mais importante, passíveis de serem demonstrados pelo clube.
O tema ainda não está esgotado. Com as recentes modificações na legislação e com o cerco do Fisco – juntamente com outras que virão – muito há que se discutir acerca da relação entre os contratos e, neste âmbito, desempenhamos papel importante na orientação de futuros entendimentos.
Luiz Antonio Grisard
é bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba, Pós-graduando em Administração Esportiva pela Universidade do Esporte (PR), membro do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD). E-mail: luizgrisard@mps.com.br