Contra o quinto constitucional

Há uma tendência a ?naturalizar? instituições, ou seja, a considerá-las como permanentes em função de sua própria preexistência, imunizando-as contra questionamentos e, especialmente, contra a discussão de sua função e utilidade presentes. Já se disse que é preciso cem anos para criar uma lei e outros cem para eliminá-la, quando já perdeu sua razão de ser. Parece-me que essas considerações bem se aplicam ao assim chamado ?quinto constitucional?, a reserva de determinado número de vagas (um quinto, em geral, um terço no STJ), nos Tribunais, para advogados e membros do Ministério Público, a serem preenchidas sem concurso público.

O quinto foi introduzido pela Constituição de 1934 e mantido pelas sucessivas Cartas que regeram o Estado brasileiro, tanto em períodos democráticos como em outros nem tanto. Na Constituição de 1988, hospeda-se no art. 95 (para os Tribunais Regionais Federais e Tribunais Estaduais), no inciso II do art. 104 (para o Superior Tribunal de Justiça, onde não é quinto, mas terço), no art. 111A (para o Tribunal Superior do Trabalho), no inciso II do art. 115 (para Tribunais Regionais do Trabalho) e no inciso II, parágrafo único do art. 123 (para o Superior Tribunal Militar).

Como se justificou esse instituto e sua permanência em nossa Lei Maior? De forma bastante simples, com a tese de que o ingresso nas Cortes de integrantes de outras profissões jurídicas seria importante para propiciar uma maior abertura e renovação do Judiciário; que a experiência adquirida em outras atividades jurídicas traria contribuição significativa para a melhora da prestação jurisdicional. Em geral, essas idéias são traduzidas na metáfora ?arejamento?, preferida pelos defensores do quinto.

Mas não parece que a realidade abone essas razões. Em geral, os juízes de Tribunais em vagas do quinto não são nem melhores nem piores do que os de carreira; e mais, não representam efetivo influxo de renovação no Judiciário; não agregam à instituição, enfim, algo que lhe falte. O quinto, porque destinado a preencher cargos nos Tribunais, tampouco resolve o problema, esse sim bastante grave, da inexperiência dos juízes de início de carreira, que, recém-egressos das Universidades, adentram a Magistratura sem prática jurídica prévia e, muitos, portando os preconceitos típicos da falta de experiência no mundo social e econômico. Aliás, não é apenas recomendável, mas deveria ser obrigatório que todo iniciante na carreira da Magistratura adquirisse prévia experiência na advocacia. Nesse sentido, a regra enunciada pelo inciso I, art 93 da Constituição, com a redação dada pela EC 45, já representa algum avanço (embora a referência genérica a ?atividade jurídica? ainda não resolva de todo o problema).

Mas se é assim, se essa instituição nem melhora nem piora o Judiciário, então por que não manter o quinto, por que não deixar as coisas como estão? Aqui, entra em cena uma consideração mais geral sobre o processo republicano de escolha dos agentes públicos. À parte, naturalmente, os agentes políticos e os agentes de confiança destes (ocupantes dos denominados ?cargos em comissão?, que, por sinal, devem ser reduzidos ao mínimo necessário, nunca ampliados), a meta deve ser sempre e cada vez mais universalizar o processo de escolha com base em critérios dotados do maior grau possível de objetividade (possível, repito, não absoluto). Refiro-me aos concursos públicos de provas ou de provas e títulos. Se, reconheça-se, esses concursos são, em alguns casos, falhos, a solução não é suprimí-los, mas melhorá-los, aumentar as salvaguardas, seja para evitar favorecimentos indevidos, seja para exigir e obter dos candidatos as qualidades mais necessárias ao desempenho do cargo que postulam. Tal sistema deve desempenhar o duplo papel de propiciar ao Estado um quadro profissional o mais qualificado e de abrir a todos os cidadãos, de acordo com sua formação educacional e capacidade individual, a oportunidade efetiva de ingressar no serviço público, sem depender de favores, QI (quem indica) etc.

Ora, o método da escolha a partir de listas formadas, numa primeira etapa, conforme o caso, pela OAB ou pelo Ministério Público (lista sêxtupla), e, numa segunda, pelo Tribunal cuja vaga será preenchida (listra tríplice), para, finalmente, ficar a talante do Chefe do Executivo a escolha do nome entre os três apresentados, está muito longe de atender a essas exigências. Para ganhar tal ?corrida de obstáculos?, o candidato precisa chamar a atenção, cativar, cair nas boas graças, enfim, de seus pares, dos juízes que elaborarão a listra tríplice, e, finalmente, do Chefe do Executivo. (Aliás, mutatis mutandis, não é coisa diferente que ocorre nas chamadas promoções de juízes de carreira ?por merecimento?). Bem verdade que nem sempre daí advirá alguma submissão a interesses políticos ou a outros menos confessáveis, já que a dependência se encerra com a escolha (salvo se o escolhido tiver aspirações ainda mais altas, jurisdicionais, ou, pior, como se tem visto com mais freqüência nos últimos tempos, políticas). Mas também não se põem à prova os predicados que realmente importariam na escolha de um juiz. E não seremos todos crédulos o suficiente para admitir que, ao final, prevaleça o critério da capacidade profissional (pode até suceder, mas por mero acaso), como que por obra do Espírito Santo. Nem se objete que, por determinação constitucional, a escolha deve recair sobre pessoas de ?notório saber jurídico e reputação ilibada?. Alguém seriamente acredita na efetividade desse critério?

Poder-se-ia mudar esse estado de coisas, estabelecendo-se um critério mais objetivo de escolha, mediante algum tipo de prova ou exame de proficiência dos candidatos? Em tese, sim (ainda que improvável); mas então não seria mais razoável e mais justo simplesmente remeter os advogados e procuradores interessados ao concurso público de ingresso na magistratura?

Que dizer da aspiração de muitos advogados e procuradores a ingressar no Judiciário? É legítima, sem dúvida, mas deve ser satisfeita de outra forma: mediante o ingresso na carreira pela via regia do concurso público, passando, em seguida, por todas as etapas e agruras enfrentadas pelos juízes de primeiro grau, substitutos e titulares, até chegar aos Tribunais. Há excelentes advogados e procuradores que se tornaram excelentes juízes seguindo esse laborioso caminho, sem curtos circuitos, favorecimentos.

Tudo ponderado, entendo que o quinto não mais se justifica, prestando-se apenas a satisfazer interesses individuais de advogados e membros do ministério público que desejam ingressar na magistratura sem prestar concurso e sem percorrer toda a longa carreira de juiz de primeiro grau. Seria uma pena que a OAB e o Ministério Público adotassem na discussão desse tema uma visão cegamente ?corporativista? (visão a qual, por vezes, imputam ao Judiciário e aos juízes).

Leonardo Sperb de Paola é advogado.

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