Contos de tradição e leitura

Por vezes desejaria metamorfosear-me em neurônio para participar do que se passa na mente dos alunos diante de afirmações e provocações feitas no transcorrer das aulas. Gostaria de saber como se produzem sentidos a partir de estímulos exteriores: conversas, textos, sons, imagens…

Como entendem eles quando me refiro à utilização de histórias individuais de leitura, que atuam no trabalho de construção de sentidos num texto? A forma, a presença e a importância do aprendizado anterior, obtido com trabalhos de interpretação e a compreensão dos textos os mais variados é condição de sucesso para o trabalho com a leitura de novos textos.

Vejamos, por exemplo, o início de alguns contos tradicionais: ?Um certo rei tinha um maravilhoso jardim…?, ?Certa vez havia um rei e uma rainha que não tinham filhos…?, ?Uma certa vez, um pai chamou por seus três filhos…?, ?Havia uma vez um sapateiro que trabalhava duro…?, ?Contam que um homem muito rico enviuvou…? ?Era uma vez um príncipe, filho único,…? São momentos iniciais de contos dos Grimm e de Câmara Cascudo. Textos que vieram de muito longe para morar nos livros. Livros que jazem esquecidos em estantes de bibliotecas ou de casas das famílias brasileiras. Frases adormecidas no papel, que poucos (ou raros) pais trazem aos lábios, e os transmitem aos ouvidos dos filhos. Frases que as crianças, adolescentes e adultos ficam impedidos de retransmitir. São chaves narrativas que ajudariam a abrir portas de muitos outros textos.

O comodismo da televisão, a desestruturação familiar, o excesso de desgaste no trabalho, a falta de conhecimento de pais e professores, o ensino voltado intensamente às necessidades e à ótica dos mercados são impedimentos para a criação de oportunidades de se contar histórias em família, destinadas a promover o conhecimento e o interesse pela literatura de tradição.

?Quando a memória histórica de um grupo familiar não é mantida, quando suas tradições não são transmitidas aos filhos, não são apenas fatos e estilos de vida que não são preservados. Toda uma matriz de identidade daquele grupo, que tem a função de deixar marcas de identificação nas novas gerações, é ignorada?, afirma a psicóloga Rosely Sayão em artigo recente.

Não defendo a idéia de que contos significativos sejam apenas os de antigamente. Concordo, no entanto, que a ausência deles impede ?marcas de identificação nas novas gerações?. Também impede o conhecimento de formas narrativas que atravessaram séculos. Poderiam conviver, em saudável companheirismo, com textos recém- chegados à cultura. A somatória iria enriquecer as histórias pessoais de leitura, criando o solo fértil para que novas histórias venham a ser melhor compreendidas, aceitas e adotadas. Dessa forma seria preservada a herança cultural e solidificados os instrumentos cognitivos e de sensibilidade que permitirão, no futuro, também o melhor desempenho na leitura.

Pensando em herança cultural, por onde andam os pais contadores de histórias em horas de inigualável proximidade, atenção e carinho familiar?

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