Contagiante

A nação respira aliviada. E vive momento especial de paz e alegria com tudo o que presenciou nos últimos dias. Depois que os rostos sorridentes de um presidente que sai e de outro que chega apareceram no vídeo e nas fotografias, até os mais incrédulos resmungam: está certo, é assim que se faz. “Nunca houve transição como esta”, exclamou o ex-operário eleito Luiz Inácio Lula da Silva, considerando que esse deve ser um momento singular na história política da América Latina.

E é. A começar pelo pronunciamento cortês, emocionado, mas civilizado e elegante do candidato derrotado, José Serra, ainda na noite em que se contavam os votos. Alguém ? a televisão mostrou isso para todos ? esboçou alguma reação e ele, interrompendo o discurso para depois começá-lo de novo, advertiu que estamos numa democracia, seu adversário venceu, é a vontade do povo brasileiro que deve ser respeitada, e ponto final. Nada de agressões ou destemperos.

O clima do encontro do presidente Fernando Henrique Cardoso com o eleito Lula da Silva, depois, foi algo digno de todos os elogios. De parte a parte, a cortesia e o respeito se misturaram à alegria para dar início a uma fase de poder compartilhado, em que o que vai entrar já manda, de fato, e o que está saindo abdica parcialmente do poder em nome de um objetivo mais alto ? os interesses da nação. Como no cinema, uma fusão de imagens. Uma equipe de cada governo conversa a portas fechadas trocando dados e informações que, seguramente, farão a diferença a partir do início do próximo ano, quando o novo governo tomar posse.

É claro que entre Lula e FHC existem pontos coincidentes, são velhos amigos, estiveram juntos em outras batalhas. Mas representavam pólos opostos nesta campanha (e nas anteriores, também) em que não faltaram escaramuças, acusações e até agressões de parte a parte. Até aqui, na velha política, o protocolo desenhava outro cenário: vencidos, de cara feia, nem sempre se dispunham a passar a faixa, sob pretextos vários. Teve presidente que, embora tenha recebido o mandato de graça, no dia da posse saiu pela porta dos fundos para não cumprimentar o sucessor indicado.

Mesmo vencido nesta eleição, FHC fez questão de manter a transição que certamente imaginara para o sucessor de sua preferência. E fez da derrota sofrida (pelo menos no caso presidencial) uma induvidosa vitória. Mais que isso: deu exemplo, ditou norma, fez escola. Nos estados, já se percebeu, a prática segue mais ou menos a mesma cartilha, com grupos de transição dialogando ? veja-se, por exemplo, o caso do Paraná – em benefício da população. Daqui a pouco isso acontecerá também nos municípios (e saber que não faz muito teve prefeito retirante que “passou bombril” nos discos rígidos dos computadores municipais, para dizer o menos, visando criar toda dificuldade possível para o sucessor!)

O gesto e a prática de FHC neste final de reinado encanta e lhe redime de muitos pecados. Agrega à nossa história um jeito de fazer política em que os interesses gerais pairam acima dos ressentimentos pessoais. Aconteça o que acontecer, o sucessor não poderá se valer de desculpas para justificar seus próprios erros. É a responsabilidade política a cavalo da responsabilidade fiscal que pede passagem.

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