A prisão civil do depositário infiel pode ser citada como exemplo de conflito entre um tratado de direitos humanos e a Constituição brasileira. O art. 7.º, 7, da CADH (assim como o art. 11 do PIDCP) só permite a prisão civil do alimentante (cf. GOMES, L.F. e MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, Comentários à convenção americana sobre direitos humanos, 2.ª ed., São Paulo: RT, 2009, p. 49 e ss). A CF, art. 5.º, inc. LXVII, prevê a prisão civil do alimentante e do depositário infiel. Como se vê, o conflito entre os tratados internacionais e a CF é patente.
O Min. Gilmar Mendes (no RE 466.343-SP) firmou o entendimento de que tais tratados internacionais possuem, em regra, (no Brasil) valor supralegal. Ou seja: valem mais do que a lei ordinária e menos que a Constituição Federal. Essa hoje é a posição majoritária no STF.
Quando há conflito entre a lei ordinária e o tratado internacional de direitos humanos, desde que este seja mais favorável, vale o tratado (que conta com primazia, seja em razão da sua posição hierárquica superior, seja em razão do princípio pro homine).
Pouco importa se o direito ordinário é precedente ou posterior ao tratado. Em ambas as hipóteses, desde que conflitante com o DIDH, afasta-se a sua aplicabilidade (sua validade). O tratado possui “eficácia paralisante” da norma ordinária em sentido contrário.
A incompatibilidade vertical material descendente (entre o DIDH e o direito interno) resolve-se em favor da norma hierarquicamente superior (norma internacional), que produz “efeito paralisante” da eficácia da norma inferior (Gilmar Mendes).
Não a revoga (tecnicamente), apenas paralisa o seu efeito prático (ou seja: sua validade). No caso da prisão civil do depositário infiel, todas as normas internas (anteriores ou posteriores à CADH) perderam sua eficácia prática (isto é, sua validade).
Alguns votos (no STF) chegaram a mencionar a palavra revogação (cf. RE 466.343-SP e HC 87.585-TO). Tecnicamente não é bem isso (na prática, entretanto, equivale a isso). A norma inválida não pode ter eficácia (aplicabilidade), logo, equivale a ter sido revogada.
Situação diversa: e quando os tratados internacionais conflitam com a Constituição brasileira, isto é, o que acontece quando a incompatibilidade vertical material (ascendente) ocorrer entre o DIDH e a CF? Qual norma prepondera? Como podemos dirimir esse conflito?
Há três clássicos critérios de solução das antinomias normativas. São eles: (a) hierárquico: norma superior revoga a inferior; (b) especialidade: lei especial derroga a lei geral; (c) posterioridade ou critério cronológico: lei posterior revoga a anterior.
Seguindo-se o que foi decidido pelo STF no RE 466.343-SP o conflito entre normas de direitos humanos, em regra, deve também seguir o critério da hierarquia.
Ou seja: em princípio valem as normas superiores (a Constituição ou os tratados de direitos humanos com equivalência de emendas aprovados pela sistemática do art. 5.º, § 3.º da CF) em detrimento das normas infraconstitucionais. Essa é a regra geral, que fica excepcionada quando a norma inferior é mais favorável.
Por quê? Porque em matéria de direitos humanos o critério da hierarquia não é absoluto e deve ser conjugado com outros critérios, destacando-se: (a) o da vedação do retrocesso, ou seja, uma norma nova não pode retroceder ou diminuir direitos conquistados em norma anterior (fala-se aqui em efeito cliquet da lei anterior mais protetiva); (b) princípio “pro homine” (que conduz ao diálogo entre as várias fontes normativas). As fontes dialogam (ou seja: admitem duas lógicas).
Nesse sentido é a tese de doutoramento de Valerio Mazzuoli, sustentada na UFRS, onde ficou proclamado o seguinte:
“Similarmente ao que já existe em outras disciplinas (como no Direito do Trabalho, que conhece o princípio da primazia da norma mais favorável ao trabalhador), aqui se trata “de que a norma de direitos humanos que melhor proteja a pessoa prevaleça sobre outra de igual, inferior ou até mesmo de hierarquia superior e seja aplicada naquilo que for mais protetora do direito ou dos direitos fundamentais do ser humano'(1). Isto significa, como destaca Humberto Henderson, que “a tradicional regra da hierarquia cederia frente ao caráter mais favorável de outra norma, mesmo que de hierarquia inferior, no caso em que melhor proteja o ser humano’. Nem se diga que haveria um problema de “ilegalidade’ em se aplicar uma norma inferior em detrimento de outra hierarquicamente superior, pois é a própria norma superior (v.g., a norma convencional em causa, na sua “cláusula de diálogo’; ou até mesmo a norma constitucional, como o art. 4º, inc. II, da Constituição brasileira de 1988, que expressamente consagra o princípio internacional pro homine) que exige que se aplique, no caso concreto, a norma mais favorável ao ser humano. Tal pode se dar, segundo Henderson, “entre duas normas de fonte internacional ou uma norma internacional com uma nacional, em virtude do que consagram os próprios tratados internacionais de direitos humanos'”(2).
No seu (didático) voto (HC 87.585-TO) o Min. Celso de Mello dividiu o Direito Internacional em dois blocos: (a) tratados de direitos humanos e (b) outros tratados internacionais (mercantil, v.g.). Os primeiros contariam (de acordo com sua visão) com status constitucional. Os segundos não (valem como lei ordinária, salvo disposição em sentido contrário).
No que diz respeito aos primeiros (tratados de direitos humanos) uma outra fundamental distinção foi feita (por ele): (a) o tratado não restringe nem elimina qualquer direito ou garantia previsto na CF brasileira (explicita-o ou amplia o seu exercício); (b) o tratado conflita com a CF (o tratado restringe ou suprime ou impõe modificação gravosa ou elimina um direito ou garantia constitucional).
Quando o tratado é mais protetivo (que o direito interno), a validade da norma internacional é indiscutível (porque ela está complementando a CF, especificando um direito ou garantia ou ampliando o seu exercício).
Nesse sentido: RHC 79.785, rel. Min. Sepúlveda Pertence (assim como voto do Min. Celso de Mello no RE 466.343-SP e no HC 87.585-TO). Todas as normas internacionais que especificam ou ampliam o exercício de um direito ou garantia constitucional passam a compor (de acordo com a visão do Min. Celso de Mello) o chamado “bloco de constitucionalidade” (que é a somatória daquilo que se adiciona à Constituição, em razão dos seus valores e princípios).
Na segunda hipótese (o tratado restringe ou suprime ou impõe modificação gravosa ou elimina um direito ou garantia constitucional ou, ainda, é mais aberto ou mais flexível que o direito interno) ficou proclamada (no voto do Min. Celso de Mello) a primazia da CF.
Eis um exemplo: prisão civil do alimentante. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 7.º, 7) diz que ninguém deve ser detido por dívidas e que este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar.
Note-se que a exigência feita diz respeito à autoridade judiciária competente. Na Constituição brasileira (art. 5.º, inc. LXVII), além desse requisito (que vem contemplado no inc. LXI), aparecem dois outros: (a) inadimplemento voluntário e (b) inescusável de obrigação alimentícia.
Como se vê, a CF brasileira é muito mais exigente (logo, nesse ponto, mais favorável ao ius libertatis). Nessa parte ela prepondera sobre a Convenção Americana. No que diz respeito à prisão do depositário infiel, é a Convenção que prepondera sobre a Constituição brasileira. Ou seja: sempre deve ter incidência a norma mais favorável. Aplica-se sempre a norma mais favorável ao exercício do direito ou da garantia.
A respeito do tema já se escreveu a seguinte lição:
“Curiosamente, tratando-se daquela outra hipótese excepcionada pelo inciso LXVII do art. 5.º da Constituição (inadimplência de dívida alimentar), a situação é inversa. A Carta, após dizer que “não haverá prisão civil por dívida”, excepciona o caso daquele que voluntária e inescusavelmente deixa de cumprir com a obrigação de pagar alimentos (descumpre a dívida alimentar). Atente-se bem: a Constituição brasileira de 1988 somente permite seja preso o devedor de alimentos se for ele responsável pelo inadimplemento voluntário “e” inescusável da obrigação alimentar. Não é, pois, qualquer obrigação alimentar inadimplida que gera a prisão. O inadimplemento pode ser voluntário mas escusável, no que não se haveria falar em prisão nesta hipótese. De qualquer forma, o que se pretende observar é que a redação dada pela Constituição de 1988 a esta matéria (prisão civil por dívida alimentar), difere da redação dada pelo Pacto de San José da Costa Rica, que, depois de estabelecer a regra genérica de que “ninguém deve ser detido por dívidas’, acrescenta que “este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar’ (art. 7.º, n.º 7). Ou seja, o Pacto permite que sejam expedidos mandados de prisão pela autoridade competente, em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar. Não diz mais nada; basta o simples inadimplemento da obrigação para que seja autorizada a prisão do devedor.
A Constituição de 1988, como se viu, vai mais além: inseriu na exceção respeitante ao devedor de alimentos, explicitamente, adjetivação restringente, exigindo que este inadimplemento seja voluntário e inescusável.
De forma que, sem sombra de dúvida, neste ponto, é a Carta Magna brasileira mais benéfica do que o tratado, pois melhor protege a liberdade individual. Como resolver o conflito?
Aplica-se, da mesma forma, o princípio da primazia da norma mais favorável, com base naqueles arts. 1.º, III, e 4.º, II, da Carta da República. Agora, a norma da nossa Constituição é que prevalece.
A situação é a mesma anterior (caso do depositário infiel), devendo prevalecer a norma que, no caso, mais proteja o cidadão, ou seja, que melhor ampare a pessoa humana”(3).
Nossa posição: o conflito entre um tratado internacional de direitos humanos e a CF deve ser resolvido pela lógica e orientação dada pelo princípio pro homine. Há três clássicos critérios de solução das antinomias normativas (hierárquico norma superior revoga a inferior; especialidade lei especial derroga a lei geral; e cronológico ou posterioridade lei posterior revoga a anterior).
Vale, em princípio, o critério hierárquico (a Constituição está acima dos tratados não incorporados na forma do art. 5.º, § 3.º da CF, consoante a decisão do STF RE 466.343-SP e HC 87.585-TO).
Mas esse critério não é intransigente (não é absoluto). Porque em matéria de direitos humanos valem também outros critérios, destacando-se: (a) o da vedação do retrocesso, ou seja, uma norma nova não pode retroceder ou diminuir direitos conquistados em norma anterior (fala-se aqui em efeito cliquet da lei anterior mais protetiva); (b) princípio “pro homine” (que conduz ao diálogo entre as várias fontes normativas). Como diz Valerio Mazzuoli, as fontes dialogam (admitem duas lógicas).
O Min. Celso de Mello a esse princípio (expressamente) não faz nenhuma referência. Mas é exatamente ele que está brilhando (como nunca) nas lições do Ministro.
No plano material, quando se analisa o Direito dos Direitos Humanos, os três ordenamentos jurídicos que o contempla (CF, DIDH e legislação ordinária) caracterizam-se por possuir, entre eles, vasos comunicantes (ou seja: eles se retroalimentam e se complementam eles “dialogam”).
Em outras palavras, no plano material devemos partir da hierarquia entre as normas de Direitos Humanos, mas ela não é inflexível (absoluta). Por quê? Porque por força do princípio ou regra pro homine sempre será aplicável (no caso concreto) a que mais amplia o gozo de um direito ou de uma liberdade ou de uma garantia.
Materialmente falando, portanto, não é o status ou posição hierárquica da norma que vale sempre, sim, o seu conteúdo (porque irá preponderar a que mais amplia o exercício do direito ou da garantia).
Conclusão: quando os tratados ampliam o exercício de um direito ou garantia, são eles que terão incidência (paralisando-se a eficácia normativa da regra interna em sentido contrário).
Não se trata de “revogação”, sim, de invalidade. Todas as regras no Brasil sobre prisão civil do depositário infiel são inválidas, porque conflitantes com a CADH (art. 7.º, 7) e o PIDCP (art. 11).
O Direito internacional dos direitos humanos, favorável ao ser humano, possui eficácia paralisante (invalidante) das normas internas em sentido contrário. De outro lado, quando o DIDH conflita com a CF brasileira, restringindo o alcance de algum direito ou garantia, vale a CF.
Prepondera, como se vê, sempre, o direito mais favorável (a norma mais favorável). Essa é a lógica (dialogal ou dialógica) do princípio “pro homine”. E trata-se de um diálogo de transigência (Valerio Mazzuoli), isto é, a CF transige diante do texto internacional mais favorável.
Notas:
(1) HENDERSON, Humberto. Los tratados internacionales de derechos humanos en el orden interno: la importancia del principio pro homine, cit., p. 93. No mesmo sentido, v. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, Direitos humanos, Constituição e os tratados internacionais: estudo analítico da situação e aplicação do tratado na ordem jurídica brasileira, São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002, pp. 272-286.
(2) V. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Rumo às novas relações entre o direito internacional dos direitos humanos e o direito interno: da exclusão à coexistência, da intransigência ao diálogo das fontes. Tese de Doutorado em Direito. Porto Alegre: UFRGS, 2008, pp. 110-111.
(3) MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Prisão civil por dívida e o Pacto de San José da Costa Rica: especial enfoque para os contratos de alienação fiduciária em garantia. Rio de Janeiro: Forense, 2002, pp. 160-162.
Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito Penal pela USP e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG. Foi promotor de Justiça (1980 a 1983), juiz de Direito (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001). (www.blogdolfg.com.br)
Valerio de Oliveira Mazzuoli é doutor summa cum laude em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da UFRGS. Mestre em Direito Internacional pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Unesp, campus de Franca. É professor adjunto de Direito Internacional Público e Direitos Humanos na Faculdade de Direito da UFMT e na Rede de Ensino LFG.