Considerações sobre o Código Estadual de Defesa do Contribuinte

A novel edição da Lei Complementar Estadual n.º 107/2005 (conhecido como Código Estadual de Defesa do Contribuinte) tem sido objeto de diversos artigos na mídia paranaense e, de fato, demanda diversas reflexões. Dentre elas, desponta o art. 36 da Lei Complementar, que previu o seguinte: "A comunicação do agente fazendário ao Ministério Público, contra o contribuinte, pela eventual prática de crime contra a ordem tributária, só poderá ser formalizada após o encerramento do processo administrativo, com a constituição definitiva do crédito tributário, em que se comprove a irregularidade fiscal de natureza dolosa ou fraudulenta".

Em que pesem os motivos nobres que possam ter levado à edição do específico dispositivo, o Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Proteção à Ordem Tributária, órgão do Ministério Público do Estado do Paraná, alerta para diversos problemas e distorções que possam advir de sua interpretação, senão vejamos:

Muito embora adjetivado como "garantia do contribuinte" e tendo como suposto móvel evitar que a Fazenda Pública venha a compelir aquele a recolher a carga tributária exigida, sob a ameaça de remessa de peças da exigência fiscal ao Ministério Público, temos que o dispositivo em questão pode representar um retrocesso no trato dos crimes fiscais e para os interesses da ordem tributária:

A discussão sobre o tema não é recente. Quando da edição da Lei Federal n.º 9.430/96, que em seu art. 83 previu providência similar na esfera federal, a Procuradoria da República ajuizou ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal (ADIN 1.571-1), o qual, embora não tenha declarado a inconstitucionalidade daquele dispositivo, expressamente assentou que o mandamento não tem o condão de tolher as atividades do Ministério Público na apuração de infrações contra a ordem tributária, já que tem por destinatário as Autoridades Fazendárias e não o Ministério Público Federal (Relator para o acórdão Min. Gilmar Mendes). Neste passo, tendo sido infirmado, na oportunidade, caráter penal ou processual penal ao dispositivo, salta aos olhos a impossibilidade de se querer aplicar o malsinado preceito do art.83 à Administração Fazendária Estadual, já que possuem os Estados da Federação autonomia legislativa plena, nos termos do art. 6.º do Código Tributário Nacional (guardados os preceitos de índole geral sacramentados na Constituição Federal e no próprio Código Tributário Nacional). Sobre o tema, ainda no ano de 1999, já havíamos alertado da inaplicabilidade do art. 83 às Autoridades Fazendárias estaduais (CADERNOS DO MINISTÉRIO PÚBLICO, v. 2, n.º 3, edição de abril de 1999).

E, de fato, não poderia ocorrer diversamente, já que o entendimento do dispositivo corresponderia a conceber um Contencioso Fazendário com a prerrogativa de juízo da causa colocada sob sua apreciação também na esfera criminal. Reflexamente, a Administração Fazendária, a seu alvedrio, poderia ou não levar ao conhecimento do Ministério Público e do Poder Judiciário a prática de crime de ação penal pública incondicionada. Ora, é cediço que os fundamentos e princípios – e mesmo a natureza das provas – que regem a discussão fiscal/tributária são sensivelmente diversos dos que regem o direito penal, de sorte que não se pode conceber que a solução emprestada à discussão administrativa pelo Contencioso Fiscal possa prevalecer sobre o exame da causa pelo Poder Judiciário. Desta feita, far-se-ía letra morta também do princípio de inafastabilidade de apreciação de demanda por aquele Poder da República.

Acrescente-se que, não raro, o Contencioso Administrativo/Fiscal infirma a autuação fiscal por razões que são absolutamente irrelevantes para a apreciação jurídico/penal da causa, como ausência de formalidade essencial da autuação, falta de defesa do contribuinte, eleição errônea do sujeito passivo etc. Nestas hipóteses, estar-se-ia indevidamente retardando ou impedindo a apreciação penal da causa por razões que desinteressam por completo ao operador do Direito Penal. De fato, qualquer tentativa de vincular objetivamente os campos administrativo e judicial, na hipótese de crime fiscal, incorre em erro desde o princípio, já que, naquele, o sujeito ativo da relação obrigacional (geralmente pessoa jurídica no caso do ICMS) decorre de previsão legal, sendo sua responsabilidade eminentemente objetiva, enquanto neste é autor de crime a pessoa física que, com vontade livre e consciente (responsabilidade subjetiva), pratica ou de qualquer modo colabora para a ocorrência do evento típico. O contraste é brutal.

À parte disso, interpretação literal do dispositivo conduziria a situações absolutamente insolúveis, como a impossibilidade de prisão em flagrante de autor de crime contra a ordem tributária, a impossibilidade de se manejar medidas assecuratórias de ordem patrimonial contra o sonegador e mesmo a impossibilidade da realização de ações conjuntas, compreendendo a Receita Estadual e o Ministério Público Estadual, de indiscutível efeito pedagógico. Isso sem nem considerar o prazo prescricional do crime fiscal e a decadência para constituição do tributo, que são completamente diversos.

É certo que, nos últimos tempos, o Supremo Tribunal Federal concedeu algumas ordens de "habeas corpus" a acusados de crimes contra a Ordem Tributária, sob o argumento de que a inscrição em dívida ativa consistiria condição objetiva de punibilidade do crime fiscal. Porém, esse entendimento de aspectos de direito penal (ao nosso ver, "data venia", equivocado), pronunciado já na esfera adequada (Judiciário), não se confunde com o preceito administrativo do art. 83 da Lei Federal n.º 9.430/96, repetido pelo art. 36 da novel Lei Complementar Estadual n.º 107/2005. De fato, uma coisa é um Juiz considerar que, em hipótese concreta, esteja ausente alguma elementar do tipo penal ou qualquer condição de punibilidade. Outra coisa, bem diversa, é negar ao Ministério Público e ao Poder Judiciário o conhecimento de hipótese de crime em tese, de ação penal pública incondicionada. Não se está, portanto, a criticar o pronunciamento judicial, senão o dispositivo administrativo que restringe a informação aos órgãos de Estado competentes para apuração da prática de crime. Além disso, o direito brasileiro contempla textos legais que determinam o encaminhamento de peças e documentos ao Ministério Público, quando verificados indícios de infração penal, a saber:

O art. 7.º da Lei Federal n.º 4.729/65, que definia até 1990 os crimes de sonegação fiscal (e que não foi revogado pela Lei Federal n.º 8.137/90), estabelecia expressamente que "As autoridades administrativas que tiverem conhecimento de crime previsto nesta Lei, inclusive em autos e papéis que conhecerem, sob pena de responsabilidade, remeterão ao Ministério Público os elementos comprobatórios da infração, para instrução do procedimento criminal cabível".

Já o Decreto-lei n.º 3.688/41 em seu art. 66, inciso I, prevê como contravenção penal deixar de comunicar à autoridade competente "Crime de ação penal pública, de que teve conhecimento no exercício de função pública, desde que a ação penal não dependa de representação".

E nem há que se levantar melindres acerca do sigilo que reveste a intimidade fiscal do contribuinte, já que o art. 198 do Código Tributário Nacional, com a alteração promovida pela Lei Complementar n.º 104/2000, em seu parágrafo 3.º, inciso I, dispõe que não é vedada a divulgação de informações relativas a representações fiscais para fins penais.

Assim, ao reverso de constituir uma garantia dos contribuintes de impostos de competência do Estado do Paraná, o art. 36 da Lei Complementar Estadual n.º 107/2005 apresenta-se, "data venia", como um retrocesso, representando, outrossim, estímulo à sonegação de tributos, já que propicia ao sonegador e ao criminoso de colarinho branco ver postergada sua responsabilização penal em proveito próprio e prejuízo da coletividade.

Por tais razões, o Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção à Ordem Tributária, órgão do Ministério Público do Estado do Paraná, elaborou estas breves considerações, esperando sejam levadas em conta quando da aplicação do mandamento legal no caso concreto.

Marcelo Alves de Souza e José Geraldo Gonçalves são promotores de Justiça e atuam junto ao Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção à Ordem Tributária, do Ministério Público do Paraná.

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