Considerações sobre livros vendidos e olhos vendados

O lançamento de O Zahir, de Paulo Coelho, enseja mais uma vez a reflexão a respeito de textos, modos de escrita e leitura, temas e comportamentos associados às narrativas destinadas a um público numeroso mas restrito em expectativas, e de baixo desempenho ao lidar com a palavra literária.

As três revistas semanais mais lidas no Brasil demonstraram, há poucas semanas, o quanto estão afinadas quando se trata de expor um pensamento único. Numa delas, há a informação de que Paulo Coelho fez o lançamento mundial de seu mais recente livro no Irã (!) e se tornou notícia de capa como ?o mais global e influente dos brasileiros?. Os números da vendagem de suas obras são fenomenais para o tradicionalmente minguado mercado editorial brasileiro: 65 milhões de exemplares, em 56 idiomas e 150 países.

É uma prova cabal da preferência dos leitores globalizados, embora não represente igual volume de qualidade de pensamento.

Alunos e professores costumam ficar impressionados com esses números, bem como a imprensa – muito apegada a estatísticas – e os leitores de pouca leitura. Para os leitores de pouca fé, tudo soa muito repetido, redundante.

Servir ao público e servir à arte nem sempre compõem um par harmonioso. Provavelmente se excluem.

Desconfio, por princípio, de textos apoiados em máximas, como os do mago em questão. Cristalizam e uniformizam a realidade, convertendo em tronco queimado e enegrecido a árvore frondosa das contradições e multiplicidades discursivas com que a literatura costuma se apresentar ao longo da história.

No entanto, vivemos em tempos de crescimento do analfabetismo funcional. Recente pesquisa realizada em empresas multinacionais de São Paulo atestou que 78% de seus empregados não compreendem nem interpretam os textos que circulam no ambiente de trabalho.

O surgimento da cultura de massa, como sabemos, é um dos efeitos da sociedade industrializada, e trouxe aos estudos sobre a literatura um outro foco de interesse. A escola de Frankfurt, com Adorno e Benjamin, ao atuar na compreensão do fenômeno da cultura de massa, ainda persistiu em opor os produtos eruditos e os de massa.

Hoje, com o atual dimensionamento da noção de cultura, ampliada para levar em consideração a multiplicidade e a diversidade, e, em especial, os produtos culturais destinados à massa, têm sido realizados estudos e avaliações mais generosos e menos preconceituosos, a ponto de Antoine Compagnon apresentar como uma das características da modernidade a ?paixão pela literatura de massa?. Stuart Hall e Paddy Whannel mapearam as características da cultura de massa, reconhecendo nela dez tópicos, a saber, o poder enquanto manipulação e concentração na mão de poucos, a produção em massa, a substituição das pessoas por consumidores, a proposição de um pseudomundo habitado por estereótipos e concebido de modo uniforme e sem ambigüidade – a ruptura com o passado, a transformação de desejos e sentimentos em itens vendáveis, o elogio da mediocridade, o culto à personalidade e a evasão da realidade.

Dadas essas premissas, o julgamento da produção de massa implica a intensa ligação – e até dependência – a todo um processo de construção de leitores passivos, resultantes do apagamento do sujeito e de sua individualidade.

Outra perspectiva crítica vem à tona quando, ao tratar da literatura de massa, busca entender as relações entre os textos e o atendimento aos leitores reais, empíricos. Na transformação dos sujeitos em consumidores, o tratamento dado à literatura pela indústria cultural e pela mídia não difere daquele aplicado aos demais produtos culturais.

A sondagem do mercado, isto é, da comunidade de leitores (como ocorreu com o Índice Nacional de Analfabetismo Funcional – INAF), culmina, na ponta do processo, no interesse em definir estratégias de criação de textos e sua vendagem, na configuração de assuntos e temas preferenciais, no redesenho de uma postura melhor alicerçada para divulgar, distribuir e fazer chegar às mãos de leitores produtos-livros que atendam ao desejo desses consumidores.

O procedimento de manipulação das ofertas e a submissão a critérios alheios aos que demandam produtos culturais igualam o livro, o texto que ele veicula e o processo de atuação de leitores às relações dos consumidores de detergentes, cervejas, ídolos do futebol e telenovelas.

A cultura de massa desdenha das preocupações estéticas e conhecimento crítico, assim como pasteuriza, censura e apaga a cultura popular.

O que nos torna escravos dessa produção conformadora é a leitura exclusiva, de um mesmo e sempre repetido gênero literário. A facilidade, o já-lido, produz a castração da vontade de empreender esforços para dar conta de textos mais complexos e a acomodação é resultado de textos requentados e repetidos. Esse embotamento culmina na recusa em discutir, com isenção de ânimo e com argumentação poderosa e crítica, a literatura de massa, seus pressupostos e sua contribuição para a manutenção da passividade e da submissão dos leitores. 

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