Prestada a conduta pelo agente, cumpre ao operador do direito perceber se a mesma causa considerável modificação no mundo exterior, se atingiu um bem jurídico, em seqüência, a norma e se a mesma se amoldou ao tipo penal proibitivo.
Percorrendo este caminho – bem jurídico – norma – tipo penal – alcançar-se-á o querer do agente, a manifestação de sua personalidade, os motivos à prática delituosa – art. 59, Código Penal – servindo de norte ao juízo à efetivação do princípio constitucional da individualização da pena – art. 5.º, XLVI – bem como ao da fundamentação de toda e qualquer decisão judicial, sob pena de reconhecer-se sua nulidade – art. 93, IX.
Nestas vistas, indaga-se qual seria a melhor resposta àquele cuja conduta enquadrada em delitos previstos na Lei 4.729/65 – sonegação fiscal – e na Lei 8.137/90 – contra a ordem tributária. Bem é sabido que diferem ditos delitos dos comumentes tratados na praxe forense – homicídio, furto, lesão corporal, estupro, dentre outros – apresentando estes, no geral, uma maior probabilidade de se tornarem noticiáveis em imprensa especializada. Talvez o seja pela proximidade de grande parte da população, tornando-os assim “corriqueiros”, “palpáveis”, “visíveis” e “concretos”. Outra peculiaridade confere-se ao comportamento da vítima, a qual contribui à conduta do autor do fato. Em delitos de sonegação fiscal e contra a ordem tributária, esta atitude da vítima é ausente, vez que esta é representativa de toda a coletividade, materializada, por sua vez, na figura do Fisco. Sua repercussão, em contrapartida, atinge todo o aparato a que este é responsável para o andamento da máquina administrativa governamental, a manutenção dos direitos constitucionalmente garantidos, assim bem como a realização dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, previstos no art. 3.º, a manutenção dos direitos e deveres individuais e coletivos do art. 5.º, os direitos sociais dos artigos 6.º ao 11.º, alcançando a égide da existência da própria organização estatal em si – art. 18 – e poderes decorrentes – art. 44 a 135, todos da Constituição Federal.
Ante a magnitude de efeitos causados, pode perfeitamente alguém insurgir-se, afirmando não denotar qualquer diferença no querer de um praticante de delitos fiscais dos perpetrados pela “massa”, a não ser a quantidade de agentes atingidos – por estes, basta uma vítima para criar clamor público, incindindo, por vezes, na criação ou alteração de leis, nem sempre caminhadas no rumo certo – bem jurídico – norma – lei – enquanto naqueles, a sociedade é atingida e, portanto, um número infindável de vítimas surge e a reação não é tão forte quanto a ao menos aguardada.
A todos os delitos – “da massa” e fiscais -, indiferentemente, cabível é o instituto da extinção da punibilidade arrolado no art. 107 do Código Penal, muito embora sua redação não seja taxativa, admitindo, portanto, interpretação extensiva.
Através desta viabilidade, e ainda considerando a individualidade pertinente, reconhecida pelo legislador, em razão da vítima – Fisco – e os benefícios a esta concernentes, surgiram outras formas de se prestar dito fim à perseguição estatal a delitos de ordem fiscal. O art. 2.º da Lei 4.729/65, dispunha que era extinta a punibilidade nos crimes previstos nesta lei quando o agente promovia o recolhimento do tributo devido, antes do início na esfera administrativa da ação fiscal própria; o art. 14 da Lei 8.137/90 viabilizava o instituto, antes de sua revogação pelo art. 98 da Lei 8.383, de 27 de dezembro de 1991, “a extinção da punibilidade pela promoção do pagamento antes do recebimento da denúncia“. Em suma, recolhido o tributo, nos termos apontados, o benefício era imediato. Com a revogação anotada, e, em havendo pagamento ao Fisco, em momento que o fosse – antes do início do procedimento administrativo ou judicial -, a conduta do indivíduo serviria somente para diminuição da pena, entendido por alguns, que a mesma não podia ultrapassar o mínimo legal. Com o advento da Lei 9.249/95, em seu art. 34, vigente a partir de 1 de janeiro de 1996, voltou-se a premiar os praticantes de crimes fiscais com dita extinção, desde que quitassem a dívida antes do recebimento da denúncia – “extingue-se a punibilidade dos crimes definidos na Lei n.º 8.137, de 27-12-1990 e Lei n.º 4.729, de 14-7-1965, quando o agente promover o pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia.” Instrumento paralelo, porém não incindível aos casos em deslinde, é o existente na redação do parágrafo 2.º do art. 168-A, o qual permite a extinção de dívidas para com a Previdência Social, não só com o pagamento, mas também com a confissão, a declaração das contribuições, importâncias e valores, devendo ainda prestar informações devidas a esse órgão. Pela complexidade de atos necessários a que o fim da viabilidade de persecução do estado sobre o agente venha a perpetrar-se, pode ser considerado um bom instituto.
O artigo 156 do Código Tributário Nacional contém situações que são causas de extinção do crédito tributário além do pagamento puro e simples, como a compensação, transação, remissão, prescrição, decadência, conversão do depósito em renda e outras que não trazem influência para o tema. Assim, por uma interpretação teleológica, poderia valer-se desta incursão à busca da extinção da punibilidade por intermédio destes outros institutos, que não só o pagamento, vez que, desta forma, agir-se-ia em prol do agente, vistando, nestes termos, a presença da analogia in bonam parte – art. 4.º da Lei de Introdução ao Código Civil de 1916, ou quiçá, art. 3.º do Código de Processo Penal.
Todo esse aparato leva a crer que o legislador começa a expandir textualmente maneiras auxiliadoras do juízo quando de uma eventual aplicação de pena – se ainda chegar a esse ponto – de perceber se em algum momento o querer do contribuinte o era perfeitamente de abalar o Fisco, resguardar-se de alguma atitude que deste discorda, ou de perfeito desconhecimento do ato ilícito e antinormativo praticado.
Essa viabilidade de sopesar conferida ao legislador corrobora a presença do princípio constitucional da proporcionalidade, extraindo a noção de justiça, inovando e progredindo o sistema de respostas. Derivará deste, por certo, os da intervenção mínima e da razoabilidade judicial na conduta praticada pelo agente, como da proporcionalidade de penas eventualmente aplicadas, da legalidade, da tipicidade, da reprovabilidade social da conduta ou do injusto. Decorrerá, portanto, da natureza dos comandos dos princípios válidos a otimização das possibilidades fáticas e jurídicas ante uma determinada situação.
Certo, portanto, se perceber que o querer do agente pesa consideravelmente quando se depara com ditas normas beneficiadoras. Seu intuito e a busca de seu real objetivo viabilizarão eventual quantum de resposta penal, acaso não queiram se aproveitar da oferta legal prestada.
Considerando que o agente venha a ser condenado, deparar-se-á, em sendo o caso, com o preceito do artigo 4.º da Lei 4.729/65, da mesma extraindo-se que “a multa aplicada nos termos desta lei será computada e recolhida, integralmente, como receita pública extraordinária.” Não traz a lei qualquer forma para seu cálculo.
Daí, vislumbrar-se, num primeiro plano, valendo-se da autorização da subsidiariedade do art. 8.º da citada Lei, em entendê-la como uma simples pena criminal, abarcando-se o art. 59 do Código Penal, e outros correlatos para a quantificação. Neste momento, deparar-se-ia com o art. 49 do mesmo Codex, vertendo seu pagamento ao fundo penitenciário, vindo a ser a participação da Fazenda Pública somente secundária, contribuindo com sua legislação relativa à dívida ativa, nos termos do art. 51 do Código Penal.
Porém, entende-se que dita multa nos moldes do citado arts. 4.º é direcionada direta e imediatamente à Fazenda Pública, muito embora não se confunda com os tributos descritos nos arts. 145, 148, 154, todos da Constituição Federal, nem com o conceito prestado pela conjugação do art. 3.º ao 5.º do Código Tributário Nacional. Mantém característica híbrida – direito penal e tributário – beneficiando, assim, o Fisco, e, em contrapartida, todos a comunidade.
É bem certo que o Direito Penal Moderno permite ao agente a prática de condutas, a validade e eficácia de sua liberdade inerente à própria natureza humana, sendo somente limitada e invadindo sua esfera a partir do momento propício a tanto, vistado este pelo legislador como a barreira última para atingir a sociedade seus fins, prestando-se, assim, sua continuidade.
Neste campo, com o objetivo de resposta à vítima, atuará o juízo e, quando entender por bem, aplicará pena privativa de liberdade. Deverá, igualmente, ter a liberdade de prestar-se da presença dos institutos do crime continuado, formal e material, previstos nos artigos 71, 70 e 69, respectivamente do Código Penal, ao invés de somente vistar as penas do art. 1.º da Lei 4.729/65 – que, por si só, são levadas por força da Lei 10.259/2001 ao Juizado Especial, com todas as benesses atinentes e aplicáveis – e as previstas na Lei 8.137/90 que, conforme as circunstâncias, podem o muito, resultarem em conversão em restritiva de direito e/ou multa, conforme art. 44, parágrafo 2.º, combinado com art. 60, parágrafo 2.º, ambos do Código Penal. Daí, retornar-se-á à ciranda da presteza, da prevenção geral e especial da pena, seja a mesma privativa de liberdade ou de multa e assim por diante.
Estas considerações são elaboradas com o intuito de demonstrar que não há igualdade de tratamento penal final ao praticante de crime fiscal se comparado a delitos “da massa”, muito embora os bens jurídicos que atinjam mantêm um reflexo consideravelmente maior e de considerável gravidade, e talvez o seja por isso que a melhor resposta a que o legislador já encontrou seja a atribuição de benesses com vistas à manutenção da receita fiscal em patamares tais que evitem a descontinuidade da própria sociedade.
Mara Francine Levin David é advogada, pós-graduanda em Direito Penal e Processual Penal Aplicado – UnicenP – Curitiba – Paraná. e-mail: espaiva@hc.ufpr.br