Neste breve ensaio, desejo demonstrar que o juiz pode conceder antecipação da tutela de ofício em casos extremos, conquanto não tenha sido formulado pedido de tutela antecipatória.

É bom recordar a questão do tempo no processo:

Poucos se dão conta, porém, que, em regra, o autor pretende uma modificação da realidade empírica e o réu deseja a manutenção do status quo. (…)

Em qualquer processo civil há uma situação concreta, uma luta por um bem da vida, que incide de modo radicalmente oposto sobre as posições das partes. A disputa pelo bem da vida perseguido pelo autor, justamente porque demanda tempo, somente pode prejudicar o autor (que tem razão) e beneficiar o réu (que não a tem).

(…) É preciso admitir, ainda que lamentavelmente, a única verdade: a demora sempre beneficia o réu que não tem razão.

(…)

Se o processo é um instrumento ético, que não pode impor um dano à parte que tem razão, beneficiando a parte que não a tem, é inevitável que ele seja dotado de um mecanismo de antecipação da tutela, que nada mais é do que uma técnica que permite a distribuição racional do tempo do processo.(1) (grifos do original)

Na nossa legislação pátria, o art. 798 do CPC reza que:

Art. 798. Além dos procedimentos cautelares específicos, que este Código regula no Capítulo II deste Livro, poderá o juiz determinar as medidas provisórias que julgar adequadas, quando houver fundado receio de que uma parte, antes do julgamento da lide, cause ao direito da outra lesão grave e de difícil reparação.

É o que se denomina doutrinariamente de poder geral de cautela conferido ao juiz.

Enquanto o interesse da parte cinge-se à tutela de seu direito subjetivo, o do Estado refere-se à manutenção do império da ordem jurídica. Pois bem, na busca da justa composição da lide que gera pacificação social, o órgão judicial tem direitos e deveres processuais que podem ser lesados ou postos em risco pela desídia ou má-fé da parte. Para coibir isso, a lei atribui diversos poderes ao juiz na direção do processo, tais como os dos arts. 125 (assegurar às partes igualdade de tratamento, velar pela rápida solução do litígio, prevenir ou reprimir qualquer ato contrário à dignidade da justiça) e 130 do CPC (determinar, de ofício, provas necessárias à instrução do processo).

A doutrina pátria leciona a possibilidade de concessão de tutela cautelar “ex officio”, como leciona o jurista Humberto Theodoro Júnior(2):

Se esses interesses públicos que o Estado detém no processo forem ameaçados de lesão, é claro que o juiz pode preveni-los adotando as medidas cautelares compatíveis, sem que tenha de aguardar a iniciativa ou provocação da parte prejudicada.

Impõe-se dessa forma, reconhecer que, quando está em jogo a garantia do próprio processo em andamento e do interesse estatal na efetiva aplicação da lei, as medidas cautelares inominadas, compreendidas dentro dos limites dos poderes processuais do juiz, tanto pode ser tomadas a requerimento da parte, como ex-officio.

Para outorgar ainda mais poderes ao juiz visando à efetividade do processo, a Lei n.º 10.444/2002 acrescentou o seguinte parágrafo ao art. 273 do CPC:

§ 7.º Se o autor, a título de antecipação de tutela, requerer providência de natureza cautelar, poderá o juiz, quando presentes os respectivos pressupostos, deferir a medida cautelar em caráter incidental do processo ajuizado.

Evidente que há importância científica em manter a diferença doutrinária entre tutela antecipatória e tutela cautelar. De outro lado, há de se destacar que ambas são espécies de tutela provisória, cujo assento constitucional reside na inafastabilidade da jurisdição e no devido processo legal, o qual engloba, entre outros, o direito à efetividade da jurisdição(3).

Note-se, ainda, que a Lei n.º 10.259/2001, que regulamenta os Juizados Especiais Federais, dispõe que:

Art. 4.º O Juiz poderá, de ofício ou a requerimento das partes, deferir medidas cautelares no curso do processo, para evitar dano de difícil reparação.

É prática corrente nos Juizados Especiais Federais que os magistrados concedam, de ofício, antecipação da tutela, e não apenas medida cautelar, com espeque no mencionado artigo. Aliás, este juiz lá atuou por seis meses e procedia, também, dessa forma.

Invoca-se, ainda, o art. 461 do CPC:

Art. 461. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.

§ 5.º Para a efetivação da tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como a imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial.

Na preciosa lição do ilustre juiz federal George Marmelstein Lima(4), não se pode negar que, “verbia gratia” no pedido de concessão de benefício previdenciário, por se tratar de obrigação de fazer (implantação do benefício), é possível a antecipação da tutela de ofício, em conformidade com o art. 461, “supra” transcrito.

Proclama o citado juiz federal:

Lembra-se que o direito processual moderno pauta-se no princípio da instrumentalidade das formas e, como decorrência da instrumentalidade – corolário do princípio da efetividade e do acesso à justiça -, o magistrado é obrigado a sanar, sempre que possível, as atecnias cometidas pelas partes hipossuficientes.

De tudo o que foi analisado até agora, inferem-se vários sinais emitidos pelo legislador e pela sociedade na direção de que se deseja a concretização do ideal de justiça na vida real. O Direito deve estar a serviço da vida, e não a vida a serviço do Direito.

Por isso, acredito que a tutela antecipatória pode ser deferida, de ofício, em casos excepcionais onde se evidencia que: a) o feito tem natureza previdenciária ou assemelhada; b) o valor do benefício é imprescindível para a subsistência do autor; c) a parte é hipossuficiente, não só do ponto de vista econômico, mas também de conhecimento de seus direitos; d) o direito postulado restou provado de forma induvidosa; e) a falta de prévio requerimento de tutela antecipatória, como motivo para não concessão de antecipação da tutela, revela-se como flagrante injustiça contra a parte autora.

Por exemplo, nos autos de ação ordinária n.º 2001.70.01.004493-6, da 2.ª Vara Federal de Londrina, verifiquei que o autor era pessoa pobre, tinha 57 anos de idade, morava na periferia da cidade, exercera atividades humildes e mal remuneradas de porteiro, serviços gerais e vigia, estando desempregado desde 12/01/1996.

O autor encontrava-se assistido pelo Escritório de Aplicação de Assuntos Jurídicos, pertencente à Universidade Estadual de Londrina – UEL, que presta assistência judiciária gratuita à população carente. Portanto, não pôde eleger o advogado de sua preferência por falta de recursos financeiros, acorrendo-se daquele serviço que não lhe onerava. A instrução evidenciara um de seus requisitos, a verossimilhança da alegação. Restara provado que o autor estava inválido para o trabalho, de forma total, permanente e irreversível, devido às seqüelas do AVC, desde 26/02/1997, quando acometido da doença.

Ora, as leis devem ser interpretadas em conformidade com a Constituição Federal, e a norma insculpida no art. 273 do CPC não foge à regra.

Sobretudo, em homenagem e obediência ao princípio da dignidade humana que é fundamento da República Federativa do Brasil, decidi, nos autos mencionados, que devia ser concedido, em antecipação de tutela “ex officio”, o benefício de aposentadoria por invalidez a fim de proporcionar ao doente um certo conforto no tempo que lhe resta de vida, apartando a preocupação com a sua subsistência. Enfim, representava o fim de um calvário de mais de sete anos percorrido nas esferas administrativa (5 anos) e judiciária (2 anos).

Sobre o que vem a ser dignidade da pessoa humana, adoto os contornos traçados pelo professor Cleber Francisco Alves:(5) “(…) A pessoa humana é dotada de uma dignidade excelsa e sublime por ter sido criada à imagem e semelhança do próprio Deus, conforme ensinamento das Sagradas Escrituras. (…) por maiores que sejam as diferenças pessoais, subsiste uma igualdade essencial da natureza/dignidade, que faz de cada homem um fim em si mesmo, sendo indevido tratar o semelhante como mero objeto, como mera mercadoria ou como força de trabalho; ele deve ser tratado como irmão”. Para os ateus, basta pensar no princípio da empatia: coloque-se no lugar do terceiro e pense, com sinceridade, se seria justo ser (des)tratado da mesma forma.

Em relação ao dano irreparável ou de difícil reparação, estavam evidenciados os requisitos, necessários e suficientes ao deferimento da prestação previdenciária em tutela antecipatória “ex officio”, em razão da sua doença incapacitante, idade avançada e situação econômico-financeira miserável.

A demora de mais um dia implicaria dano irreparável, pois, tendo sido reconhecido seu direito, qualquer espaço de tempo não poderá ser-lhe restituído. Além disso, o tempo de trâmite dos três processos administrativo (mais de cinco anos), em razão de que houve seis perícias no INSS (a última favorável ao segurado), extrapolou o que seria razoável.

Por conseguinte, penso que a doença incapacitante, idade avançada, estado de miserabilidade, impossibilidade de escolher advogado, princípio da efetividade da jurisdição, respeito à dignidade da pessoa humana (que constitui fundamento constitucional da República Federativa do Brasil), impunham, naquele caso concreto e em outros assemelhados, a concessão de ofício da tutela antecipatória.

Note-se que este entendimento tem pertinência com o inciso I, do art. 273, chamado de antecipação-remédio, objetivando proteger a parte acometida de fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação.

Quanto à antecipação-sanção (caracterização de abuso de direito de defesa ou manifesto propósito protelatório do réu), prevista no inciso II, do art. 273, do CPC, temos a belíssima obra “A Antecipação da Tutela Ex Officio”, do professor Fernando Luiz França, a qual remetemos os leitores ávidos em aprofundar-se no tema. “Data venia”, discordamos desse ilustre jurista no ponto em que ele não vislumbra possibilidade de antecipação da tutela de ofício no caso do inciso I, do art. 273, do CPC, sob o argumento de que o litigante é quem sofre os efeitos do dano e, dessa forma, somente ele estaria legitimado a pedir a antecipação da tutela.

Leciona o professor Fernando Luiz França que:

“Este processo é regido por disposições tendentes à solução desses conflitos, e qualquer comportamento ilícito da parte, na verdade é um comportamento contrário às finalidades do processo, transmudando-se, ao final, em atentatório à dignidade da justiça.

Então, quem deve estar autorizado a antecipar a tutela nesses casos é o Estado-juiz, em represália ao comportamento ilícito do litigante.

(…)

Basta reconhecer que antecipação pelo abuso do direito de defesa ou manifesto propósito protelatório tem caráter sancionatório, para impor ao juiz o dever de agir, toda vez que uma dessas hipóteses ocorra.”

Em razão de que não somente aos litigantes, mas ao Estado interessa a rápida e justa solução da lide, então quando acontecer “… abuso de direito de defesa ou de manifesto propósito protelatório, o que ocorre na verdade é negar o acesso à justiça, uma vez que obstaculizaria o próprio Poder Judiciário de prestar a jurisdição de forma célere e efetiva”, finaliza o autor citado.

E se a parte beneficiada pela tutela antecipatória de ofício não quiser implementá-la? Basta não executá-la.

Qual a responsabilidade pessoal do juiz ao conceder a tutela antecipada de ofício? A mesma responsabilidade existente no exercício jurisdicional de qualquer decisão.

Conclusão: é possível a antecipação da tutela de ofício pelo magistrado nos dois incisos do art. 273 do CPC, atendidas as premissas acima explanadas.

É a nossa modesta contribuição a tema tão relevante.

Notas

(1) MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela Antecipatória, Julgamento Antecipado e Execução Imediata da Sentença, São Paulo: RT, 1.ª ed., 1997.

(2) Processo Cautelar, pg. 102, São Paulo: Leud, 13.ª ed., 1992.

(3) ZAVASCKI, Teori Albino. Antecipação da Tutela, São Paulo: Saraiva, 1.ª ed., 1997.

(4) Antecipação da tutela de ofício, artigo publicado no Jornal da Ajufer, pgs. 08 e 09, Abril 2002

(5) ALVES, Cleber Francisco. O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana: o Enfoque da Doutrina Social da Igreja, Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

Márcio Augusto Nascimento é juiz federal substituto da 2.ª Vara Federal Cível de Londrina-PR.

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