A CF/88 compõe o Tribunal de Contas da União com nove membros. Um terço ou três, quem escolhe é o presidente da República, sendo um, livremente, e os outros dois, dentre os Auditores e membros do Ministério Público especial. Dois terços, ou seis, são escolhidos pelo Congresso Nacional (art. 73 e § 2.º).
Essa proporcionalidade e a respectiva distribuição das indicações aplica-se, no que couber, à composição dos Tribunais de Contas dos Estados, fixada em sete membros (art. 75 e p. único).
Ao transpor para os equivalentes estaduais a formação do Tribunal de Contas da União, alentada jurisprudência do STF destina três indicações aos governadores (uma de sua livre escolha e duas vinculadas aos auditores e membros do Ministério Público), restando quatro às Assembléias Legislativas (v.g. RTJ 170/125).
Ao primeiro lance de vista, sobressai a discrepância desse cálculo com a regra paradigma da proporcionalidade, ou seja, de um terço e dois terços, respectivamente, na escolha pelos governadores e Assembléias Legislativas.
De início, o STF contraria a aritmética quando afirma a indivisibilidade do número sete, embora todo o número seja divisível. Parece ter havido confusão com o número primo, só divisível por si e pela unidade, sem apresentar fração residual. Cuidando-se, porém, de proporcionalidade, em tese, as frações serão inevitáveis.
Partindo desse falso pressuposto, o STF chega à conclusão ilógica de que um terço de sete é igual a um terço de nove, ou três.
Há gritante erro de proporção. Se um terço de nove são três, um terço de sete não pode ser igualmente três, pois, sendo o número sete obviamente, inferior a nove, o seu terço deve, necessariamente, ser algo inferior ao terço daquele. E o número inteiro imediatamente inferior a três é o dois. Destarte, o terço de sete integrantes do Tribunal de Contas, posto à livre escolha dos governadores, são dois. Conseqüentemente, os demais cinco membros constituem a quota proporcional de dois terços deixados à discrição das Assembléias Legislativas. Este é o segundo equívoco cometido pelo STF, expresso na evidenciada incorreção comparativa.
O correto cálculo aritmético da proporcionalidade, na esfera estadual, começa pela divisão do número sete por três, a fim de serem encontrados os terços, um para os governadores e dois para as Assembléias Legislativas. Então, dividindo-se o número sete por três resultam 2,333. Eis o terço. Logo, dois terços são o dobro ou 4,666.
Como os integrantes do Órgão são pessoas físicas, imperativa a aplicação aqui da teoria dos restos, ou melhor, da metodologia vigente na pátria da proporcionalidade, que é a proporcionalidade na representação política, consagrada pelo Código Eleitoral, art. 106. Determina este dispositivo legal o desprezo de fração, se igual ou inferior a meio, e o arredondamento para cima, se superior a meio.
No âmbito das casas legislativas, nesta matéria supletivamente assistida pelo critério adotado no Direito Eleitoral, onde as comissões técnicas sempre foram constituídas em obediência à proporcionalidade partidária (art. 58, § 1.º, da CF/88), as frações assumem importância decisiva. Para não alongar o parêntese com citações dos regimentos internos dos parlamentos, é suficiente o testemunho do autorizado Hely Lopes Meirelles a esse respeito: “O quorum de dois terços será obtido pelo resultado aritmético da operação, acrescido da fração necessária à formação do número inteiro imediatamente superior aos dois terços. Ex.: 19 Vereadores – 13, visto que os dois terços aritméticos são 12,666. Completando-se a fração, obtém-se o número imediatamente superior ao resultado aritmético, que é a maioria qualificada de dois terços…”.(“Direito Municipal Brasileiro”, 1985, 5.ª e última edição autêntica, p. 478).
Assim, porque a dízima periódica de 2,333 é inferior a meio, será desprezada, retrocedendo-se ao número dois, e a dízima de 4,666, porque superior a meio, será arredondada para o número imediatamente superior, ou cinco, que vêm a ser os dois terços de sete.
Em rigor aritmético, a proporcionalidade do Tribunal de Contas da União, reproduzida no plano estadual, indica duas escolhas pelos governadores, ambas vinculadas às categorias funcionais do órgão, e cinco pelas Assembléias Legislativas, diversamente do quociente obtido, na mesma operação, pelo STF.
Mesmo encerrado no círculo de ferro da inexorabilidade aritmética, o STF desejou emprestar trato igualitário aos governadores, estendendo-lhe a prerrogativa, reservada somente ao presidente, da livre escolha de um dos componentes dos Tribunais de Contas estaduais. Para tanto, retirou das Assembléias Legislativas uma das cinco escolhas decorrentes da real proporcionalidade, acima demonstrada.
Tal providência atrai contra si não poucas objeções.
A primeira, consiste em que, para o presidente da República, a CF/88 reserva expressamente uma vaga no Tribunal de Contas da União, mas, aos governadores, não. Igualando as mencionadas autoridades, o STF editou norma nova, pela via interpretativa, assumindo o poder constituinte. Na verdade, legislou.
A segunda, repousa no significado restritivo da expressão “no que couber” inserta no dispositivo que plasma os Tribunais de Contas estaduais à imagem e semelhança do Tribunal de Contas da União. Quando se opera a transposição, aos estados, da divisão proporcional dos componentes do Órgão federal, não sobra vaga para o governador escolher livremente o titular. Numa palavra, o modelo originário do paradigma “não cabe” integralmente.
A terceira e, sem dúvida, a mais relevante, concerne ao fato de ser a proporcionalidade uma disposição constitucional de natureza prescritiva, e a alegada “simetria”, uma expressão da conveniência do intérprete. Aquele cânone constitucional não pode sucumbir ante uma espécie de medida compensatória, e esta constitui prerrogativa exclusiva do legislador.
A quarta, deriva do emprego de critérios diversos do empregado na obtenção da proporcionalidade na composição dos órgãos do Poder Judiciário.
Em relação aos Tribunais, o STF não considera indivisíveis todos os números ímpares. Tanto é que, por exemplo, aplicou a proporcionalidade do quinto constitucional a Tribunal integrado por vinte e um membros (21 : 5) e, bem ou mal, enfrentou a questão os restos. Veja-se:
“Tribunal de Justiça. Se o número total de sua composição não for divisível por 5, arredonda-se a fração restante (seja superior ou inferior à metade), para o número inteiro seguinte, a fim de alcançar-se a quantidade das vagas destinadas ao quinto constitucional, destinado ao provimento de advogados e membros do MP”. (Ação Originária 493-7- BA, Rel. Min. Octávio Gallotti – DJU 10/11/00, p. 034). No voto condutor desse acórdão, figura a seguinte passagem: “Se o número não for divisível por cinco, arredonda-se a fração (seja superior ou inferior à metade) para o número inteiro seguinte” (É que se assim não for feito, o Tribunal não terá, na sua composição, um quinto oriundo da advocacia e do Ministério Público Federal, com o descumprimento da norma constitucional (CF, art. 94 e art. 107, I)”.
“Inconstitucionalidade de Constituição Estadual, que assegurava 4/5 do Tribunal aos juízes oriundos da Magistratura, “pela possibilidade de choque com a garantia do provimento do quinto restante, quando for múltiplo de cinco o número de membros do Tribunal””. (ADI 160 – TO – Rel. Min. Octávio Gallotti – DJU 20/11/09, p. 02).
“…se o número total da composição não for múltiplo de cinco, arredonda-se a fração – superior ou inferior a meio – para cima, obtendo-se, então, o número inteiro seguinte. (…) No caso, sendo o Tribunal composto por nove desembargadores, o quinto constitucional deve ser de dois representantes, haja vista que deve ser arredondado para dois o resultado encontrado na operação para apurar-se o “quinto” dessa titularidade (9 : 15 = 1,8)”. MS 22.323-5 – SP, Rel. Min. Carlos Velloso, citado no RMS 10.594 – AC – Rel. Min. José Delgado – DJU 02.05.2000 – Ementário da Jurisprudência do STJ – 27/46).
O Min. Celso de Mello no mandamus acima referido consignou: “Esse entendimento – que já se refletiu em votos proferidos pelos eminentes Ministros Francisco Rezek e Sepúlveda Pertence, por ocasião do julgamento do pedido de medida cautelar na Adin 1.171- RS, Rel. Min. Carlos Velloso – constitui, na realidade, posição assumida pelo próprio Supremo Tribunal Federal, cuja jurisprudência, obsequiosa para com o princípio do quinto constitucional, tal como consagrado pela Lei Fundamental de 1946, reconhecera a plena validade jurídica do preceito de legislação estadual que mandava computar como unidade integral a fração superior a meio (RTJ 287/878)”.
Em voto proferido acerca do quinto de antigüidade para promoção de juiz ao Tribunal Regional Federal, o Min. Sepúlveda Pertence assim opinou: “Resta a pretensão de arredondamento do número fracionário – 6,4 – resultante da divisão de 32 por 5; mas não se vislumbra a razão jurídica pela qual, no caso, se devesse fazer abstração da regra habitual de que só a fração superior a meio é que se arredonda para o número inteiro superior”. (MS 21.631 – RJ – Pleno – j. 9.7.93 – RTJ 174/815).
Sobre a questão acima referida, pronunciou-se o Min. Marco Aurélio, nestes termos: “Peço vênia ao nobre relator. Não posso, de maneira alguma, reduzir para seis o número encontrado com o divisor cinco e trinta e dois juízes existentes. Se estou diante de um número fracionário e se desejo, tanto quanto possível, viabilizar o poder de escolha amplo pelo Tribunal, encarando com alguma restrição o que se contém na alínea b do inciso II do artigo 93, parto para o arredondamento a maior”.(RTJ 174/822)
Ressai evidente a diferença injustificável entre o cálculo da proporcionalidade para os Tribunais de Contas e a proporcionalidade para o cálculo da proporcionalidade do “quinto” para os Tribunais Judiciários. Afinal, a proporcionalidade numérica, como categoria aritmética, é unívoca e, pois, repele distinções aplicativas.
A quinta, repousa em que a divisão proporcional dos lugares nos Tribunais de Contas estaduais, ostentando a dignidade de preceito constitucional, não tolera a introdução de critérios estranhos, tal a “simetrização” do governador com o presidente, a fim de que aquele também possa desfrutar da livre indicação de um conselheiro.
A jurisprudência do próprio STF, construída sobretudo, em torno de pretensão dos magistrados de carreira, que, alegando prejuízo de vaga deles retirada a favor de advogados e procuradores, pleitearam o direito aos quatro quintos na composição dos Tribunais, proclamou a hegemonia absoluta do “quinto”, por ser este emergente de norma constitucional expressa, condição não ostentada pelos reclamados quatro quintos, a saber:
“II – Um quinto da composição dos Tribunais Regionais Federais será de juizes oriundos da advocacia e do Ministério Público Federal. Esta é uma norma constitucional expressa, que há de prevalecer sobre a norma implícita, que decorre da norma expressa, no sentido de que, se um quinto é dos advogados e de membros do Ministério Público Federal, quatro quintos serão de juízes de carreira. Observada a regra de hermenêutica – a norma expressa prevalece sobre a norma implícita – força é convir que se o número total da composição não for múltiplo de cinco arredonda-se a fração – inferior ou superior a meio – para cima, obtendo-se então o número inteiro seguinte. É que, se assim não for feito, o Tribunal não terá em sua composição, um quinto de juízes oriundos da advocacia e do Ministério Público, com descumprimento da norma constitucional (C.F., art. 94 e 107, I)”. (MS 22.323-5 – SP – Rel. Min. Carlos Velloso).
“Essa conclusão nada mais reflete senão o reconhecimento de que o postulado do quinto constitucional traduz, por efeito de sua própria natureza, um princípio intangível, que não admite a utilização de quaisquer critérios interpretativos de cuja aplicação possa derivar a perda de eficácia da própria norma que institui a cláusula de reserva em favor das categorias funcionais mencionadas. A realidade normativa emergente da Constituição da República claramente evidencia – tratando-se de tribunais locais ou de Tribunais Regionais Federais – que, em qualquer deles, considerada a sua composição integral, deverá haver, no mínimo, um quinto de magistrados necessariamente oriundos da classe dos Advogados ou do Ministério Público. (…) Há, portanto, em favor dos Advogados e dos membros do Ministério Público, uma reserva constitucional que lhes assegura, nos Tribunais locais e nos Tribunais Regionais Federais, uma participação irredutível que jamais poderá sofrer qualquer restrição que afete a integridade dessa ineliminável garantia mínima”. (voto do Min. Celso de Mello no MS 22.323-5).
No caso dos Tribunais de Contas estaduais, é norma constitucional expressa que dois terços dos conselheiros sejam escolhidos pelas Assembléias Legislativas e um terço, pelo governador, sendo duas escolhas comprometidas às duas já mencionadas categorias funcionais do órgão. Portanto, os três terços estão todos eles destinados pela Constituição, inexistindo espaço vago para a introdução de diferente critério distributivo dos sete lugares.
Em conclusão: é heterodoxa a providência compensatória do STF consistente em atribuir, aos governadores, a faculdade a uma escolha livre porque isso importa subtrair, às Assembléias Legislativas, a garantia mínima de escolher cinco conselheiros (2/3 de 7), assegurada expressamente pela Constituição da República.
Reginaldo Fanchin
é membro do Instituto dos Advogados do Paraná.