Como sair da crise

A indústria automotiva foi uma revolução no Brasil, do início dos anos 90 para cá. A abertura do mercado permitiu não apenas a importação de veículos, gerando concorrência com a produção nacional, nunca antes exposta a isso, como provocou grande reestruturação do setor de autopeças. Ao mesmo tempo, a instalação de novas montadoras fez do Brasil o país com maior diversidade de empresas com produção local de veículos.

A exposição à competição internacional e o aumento do número de montadoras locais acarretaram reformulação dos veículos fabricados no Brasil. No fim da década de 90, a maior parte dos modelos já era muito semelhante aos carros feitos nas matrizes, abrindo possibilidades de exportação. Houve razoável afluxo de investimento direto, seja para a aquisição de empresas de autopeças, seja para a modernização do parque instalado. Por isso, a capacidade produtiva de veículos no País alcançou cerca de três milhões de unidades por ano – ainda que com proporção de conteúdo importado bem maior do que antes dos anos 90 -, com um mix de produção atualizado e fábricas que adotam as mais modernas técnicas de organização e gestão da produção. Arranjos como o do consórcio modular tornaram-se mundialmente exemplares.

No cenário internacional, as montadoras percebiam o Mercosul como uma das fronteiras de crescimento, ao lado do Leste Europeu, do Sudeste da Ásia e da China. Os mercados americano, europeu e japonês operavam com baixas taxas de crescimento, acirrando a competição entre as montadoras. O fim da euforia do crescimento do período do Plano Real, somado à quebra da economia argentina, transformou o cenário de crescimento em estagnação. Mas as montadoras não avaliavam os riscos que corriam, em economias tradicionalmente instáveis, de produzir uma enorme capacidade ociosa?

Na primeira metade dos anos 90, dirigentes das montadoras instaladas ou em vias de se instalar no Brasil apontavam o índice de habitantes por veículo no País como indicador do potencial de crescimento do mercado e justificavam seus investimentos a partir dele: em números redondos, haviam nove habitantes/veículo no Brasil, contra cinco na Argentina e menos de dois nos Estados Unidos e na Europa. Mas esse não era um indicador de crescimento real. A indústria automobilística é, em países de renda baixa ou mesmo média, fortemente dependente da renda per capita de setores de classe média que, no Brasil, foram afetados pelo medíocre crescimento da economia nos últimos anos. Temos, então, uma situação paradoxal: as fábricas no Brasil são capazes de produzir alguns dos carros mais baratos (em torno de US$ 5 mil na faixa de entrada) e mais caros do mundo (em relação ao comprometimento da renda pessoal do consumidor para adquiri-los).

Teriam as montadoras errado grosseiramente ao estabelecer seus planos de negócios para o Brasil? Provavelmente houve erros, mas não tão grandes quanto parecem, se levarmos em conta que esse processo de mudança profunda do setor teve um grande sócio: o Estado brasileiro (União, estados e municípios), que aportou grandes subsídios para tornar viáveis os novos investimentos. Como se sabe, na formulação de um programa de expansão, a avaliação do risco é a base de qualquer cenário. Como o processo de crescimento foi extremamente alavancado com recursos de terceiros, envolvendo desde a cessão de terrenos até o diferimento de impostos, o risco do negócio caiu. Deve se somar a isso uma configuração dos novos empreendimentos em estruturas mais leves em termos de custos fixos, com forte redução de capital de giro.

Qual a saída para a crise? Este é um problema que passa pela retomada do crescimento e o aumento da renda das classes médias. Mas pode passar também pela maior inserção da indústria no comércio internacional, que, embora tenha crescido entre 2002 e 2003, ainda tem escala pequena em relação à capacidade instalada. Passa ainda – mas isso requer mais tempo e espaço para análise – pela maior inserção das subsidiárias situadas no Brasil nos circuitos de efetiva agregação de valor nessa indústria, o que envolve as atividades de design, engenharia e desenvolvimento de produtos e processos.

Se nos anos 60 o Brasil apresentava vantagens comparativas em termo de mão-de-obra direta, hoje essas vantagens se reduziram por causa da competição da Ásia. Entretanto, há agora vantagens comparativas proporcionadas por uma capacidade tecnológica localizada no Brasil em nada desprezível, fruto de quase cinco décadas de indústria automotiva no País.

Mauro Zilbovicius

é professor doutor do Departamento de Engenharia de Produção da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP).

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