Comitê de bacia hidrográfica: democracia e participação na gestão hídrica do Brasil

No dia 5 de outubro de 1988 foi promulgada à Constituição Federal, conhecida como a constituição cidadã, responsável pela restauração da plenitude democrática no país. No tocante aos recursos hídricos à Nova Carta operou uma grande transformação, pois repartiu o domínio público das águas entre a União e os Estados federados, restringindo os demais entes, sejam públicos ou privados.

No ano de 1997 foi editada a Lei 9.433 que regulamentou a gestão dos recursos hídricos no Brasil com a finalidade de possibilitar a implementação da Política Nacional dos Recursos Hídricos.

Os fundamentos para a gestão hídrica no Brasil estão fincados em seis pilares básicos que são: 1. Domínio público das águas; 2. Recurso finito e escasso, dotado de valor econômico; 3. Em situações de escassez a prioridade será o abastecimento humano e dessedentação de animais; 4. A bacia hidrográfica é a unidade territorial para fins de gerenciamento; 5. A gestão será descentralizada e participativa; 6. Uso múltiplo das águas.

Alguns aspectos devem ser ressaltados na política hídrica brasileira, o primeiro é o domínio público das águas, que significa a necessidade imperiosa da gestão pública desse bem escasso e limitado, pois a Administração Pública, através dos seus Órgãos traçará os parâmetros para os diversos usos. O segundo ponto fundamental é a gestão descentralizada e participativa, uma vez que o domínio está na esfera pública optou o legislador ordinário em declinar a gestão para uma esfera participativa e descentralizada.

É interessante discorrer mais um pouco sobre esse fundamento, pois está como pilar importante da gestão hídrica. Ora, o uso da água interessa a todos indistintamente, conquanto sem água a vida perece. O uso da água não atinge apenas um segmento da sociedade, todos necessitam dela, em primeiro lugar para beber e manter-se vivo e em segundo lugar em diversas atividades diárias.

Todos necessitam desse bem natural precioso e seu uso não pode está atrelado somente aos interesses de um ou alguns segmentos sociais, todos devem repartir a gestão de forma democrática e participativa, como forma de assegurar a concretização do princípio constitucional da igualdade no uso desse bem essencial à vida.

Igualitariamente os atores sociais, devidamente representados, deverão decidir como utilizar a água, da seguinte forma: planejando, limitando, fiscalizando, enfim, estabelecendo mecanismos de administração que possibilitem o uso múltiplo pelo conjunto da sociedade.

É fundamental entender que se a água está no domínio público e deve ser utilizada igualitariamente por todos, o Estado deve assegurar mecanismos de gestão que atendam os critérios da participação e da decisão democrática, uma vez que a gestão pública é para assegurar o acesso a todos desse recurso natural vital e escasso.

O legislador estabeleceu uma forma para concretizar a gestão democrática e participativa na gestão hídrica, a possibilidade de criação dos Comitês de Bacia Hidrográfica, órgãos integrantes do Sistema Nacional de Recursos Hídricos.

O Comitê de Bacia Hidrográfica, órgão descentralizado, integrante do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, é responsável pelo gerenciamento da bacia ou sub-bacia. Uma característica marcante da forma democrática para constituição do Comitê de Bacia foi à representatividade paritária, ou seja, representantes do Poder Público, em todas as esferas, não excederão a 50% da totalidade dos membros, ficando o restante dos 50% distribuídos com os segmentos sociais, formando um conjunto eqüitativo para o gerenciamento.

Dentre outras atribuições o Comitê de Bacia é responsável por promover o debate dos temas de interesse da bacia, dirimir conflitos hídricos na bacia, aprovar os planos de recursos hídricos, estabelecer os consumos insignificantes para fins de isenção de outorga e outras atribuições previstas em Lei.

Cabe destacar o plano de Recurso Hídricos, instrumento fundamental na gestão da bacia. No plano estará o balanço hídrico, a disponibilidade para uso, prioridades de uso, diagnóstico, intervenções projetadas, projetos, metas, racionalização no uso, enfim, a administração de todos os aspectos referentes às intervenções na bacia hidrográfica.

De forma correta o legislador ordinário destinou a aprovação do plano de recursos hídricos da bacia ao Comitê de Bacia, órgão descentralizado e participativo, que de forma democrática decidirá os destinos da bacia. Qualquer intervenção terá que ter a aprovação do Comitê de Bacia, sob pena de ferir os princípios constitucionais da legalidade e participação. O fato é que o destino sobre o uso dos recursos hídricos da bacia está a cargo dos integrantes do Comitê respectivo, integrantes esses selecionados entre os diversos segmentos com atuação na bacia.

A bacia do Rio São Francisco é um exemplo muito interessante, pois já tem Comitê constituído há mais de quatro anos, no caso em tela, o referido Comitê vem efetivando a gestão participativa e democrática tendo inclusive aprovado um plano decenal para a bacia.

Tomando como exemplo o polêmico Projeto de Transposição das águas do rio São Francisco (ou interligação de bacias) é possível observar que ele não foi aprovado no Comitê de Bacia do Rio São Francisco, conforme ata da reunião extraordinária realizada em Salvador-BA nos dias 26 e 27 de outubro de 2004. Apenas foi admitida a transferência de água para consumo humano e dessendentação de animais.

Dessa forma, ficaria inviabilizada qualquer intervenção pelo Governo Federal, uma vez que a instância democrática desaprovou o projeto, pugnando pela revitalização da bacia. No entanto, em razão de uma manobra regimental, o Conselho Nacional de Recursos Hídricos em grau de recurso aprovou o projeto. Essa manobra foi contestada judicialmente e o processo encontra-se em tramitação no Supremo Tribunal Federal, que avocou todas ações entendendo existir conflito federativo.

O Brasil buscou estabelecer um novo paradigma para gestão hídrica e ele está assentado justamente no envolvimento do conjunto da sociedade, bem como em instâncias democráticas de decisão, ou seja, possibilitar aos usuários e gestores traçarem livremente os parâmetros para o uso dos recursos hídricos de uma bacia.

Quando o Governo Federal não acata uma decisão do Comitê de Bacia, está enfraquecendo o sistema de gerenciamento, violando os seguintes princípios constitucionais: da legalidade, regime democrático, participação e descentralização.

O Comitê é a representação da descentralização e maior característica de uma república democrática e participativa, pois serão os segmentos representativos do conjunto da sociedade que estabelecerão os parâmetros de gestão hídrica.

Com toda certeza foi a grande conquista na restauração do regime democrático brasileiro, pois essa instância representa a possibilidade do envolvimento de todos na preservação do ambiente a partir do gerenciamento da bacia.

É essencial a preservação desse espaço democrático institucional, o qual vem se multiplicando em todo o território nacional, a partir da implementação dos Sistemas Estaduais de Gerenciamento Hídrico, como forma de respeito à Constituição Federal, as Constituições Estaduais e a toda legislação ordinária pertinente a matéria.

Eduardo Lima de Matos é professor de Direito Ambiental, promotor de Justiça, diretor do Núcleo de Apoio às promotorias de Justiça do Rio São Francisco e da Escola Superior do Ministério Público de Sergipe. eduardomatos@mp.se.gov.br.

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