A edição da Medida Provisória n.$ 39, que alterou dispositivos da Lei 9.615/98, mais conhecida como “Lei Pelé”, vem suscitando amplo debate não só dentro da comunidade simpatizante do futebol, mas, também, na sociedade em geral. Muito se ouviu nestes últimos dias que tal medida configurava-se como importante ferramenta moralizadora do futebol nacional, que seria instrumento responsável pela mudança nas bases organizacionais de nosso caótico futebol, que, finalmente, iria compelir os dirigentes esportivos à transparência na gestão das entidades de prática desportiva, enfim, que a MP era um marco na história do futebol brasileiro.
Embora ainda ecoem os festejos pela conquista do campeonato mundial de futebol no Oriente e, em virtude do êxito dentro de campo, alguns acreditem que nenhuma mudança estrutural fora dele seja necessária, não há como nos iludirmos. Em termos de organização e estrutura, o futebol nacional já se encontra em óbito há tempos, ainda que muitos lutem por uma breve sobrevida. Não há como negar que, a cada ano que passa, os campeonatos estão mais desorganizados, os estádios, já envelhecidos pelo tempo, não oferecem ao torcedor condições mínimas de conforto e segurança, o custo dos ingressos está bem além da realidade financeira do país e, finalmente, os maiores astros do espetáculo migram para outros países em busca de estabilidade financeira e racionalidade organizacional.
Um grande exemplo da falência estrutural do nosso esporte mais popular é o fato de que o campeonato nacional, cujo início está previsto para daqui a cerca de um mês, ainda tem indefinido seus participantes. Uma epopéia judicial entre o Caxias-RS e o Figueirense-SC promete novos capítulos para breve em virtude da decisão do juiz titular da 6.a Vara Cível de Caxias, que acolheu uma Ação Civil Pública impetrada pela prefeitura municipal determinando a Confederação Brasileira de Futebol a incluir, no prazo de cinco dias, o clube gaúcho no rol de participantes da Série A do campeonato nacional sob pena de, não o fazendo tempestivamente, ser obrigado a saldar multa diária de R$ 100 mil.
Não nos resta dúvida que a Lei 9.615/98 trouxe várias inovações, ainda que, atualmente, sua redação original esteja completamente desfigurada pela edição de várias outras leis que lhe sobrevieram. Torna-se imperativo, agora, estudo mais detalhado sobre a Medida Provisória 39/2002 que se propôs, corajosamente, a alterar por completo a fundação das entidades de prática desportiva.
Realmente é necessário debruçarmos sobre o tema com serenidade e imparcialidade. Não vos deixeis contaminar pela onda de euforia que tomou conta da imprensa nacional após a edição de tal medida ao entender, sem o necessário estudo, que ela a MP é perfeita e que terá efeitos imediatos. Análise mais profunda e técnica cabe a nós, operadores do direito.
Muitos acreditam que a Medida Provisória se reveste como alternativa solitária para implantar modificações no sistema desportivo vigente e, por este motivo, tinha urgência em ser publicada. Contrariamente, outros contestam o atropelo na sua edição. Ambas as teses merecem consideração.
A edição da Medida Provisória no momento em que todos estavam com atenções voltadas para a Copa do Mundo e com os partidos ainda se articulando para o pleito de outubro próximo me pareceu um tanto quanto oportunista. E fundamento esta opinião em dois motivos. Primeiramente, porque a Medida Provisória tema mesma redação do Projeto de Lei 6.605/2002, enviado para apreciação e debate na Câmara em Abril de 2002. Sob o argumento de que o projeto não havia sido aprovado, o governo edita a MP menos de dois meses depois, sem qualquer alteração. Ademais, ainda tramita pela Câmara o projeto de Lei 4.874/2001 que trata do Estatuto do Desporto, texto muito mais elaborado e detalhado. Ora, se existia alguma urgência na apreciação de qualquer dos projetos, esta seria para o mencionado Estatuto, visto que aprecia os mesmos temas com mais profundidade e cuja discussão foi muito mais ampla.
Por outro lado, em que pese o texto da MP não ser louvável e mereça algumas alterações, como veremos a seguir, há que se destacar uma conquista. À luz da Emenda Constitucional 32, existe a obrigatoriedade da conversão do texto em Lei no prazo de 60 dias sob pena de trancamento da pauta do Congresso Nacional, isto é, a edição atropelada da Medida até pode ser justificada pelo fato de que, seguindo os trâmites normais, dificilmente o Projeto de Lei seria aprovado em virtude da nefasta atuação da chamada “bancada da bola”, que jamais iria votá-lo. Outro ponto importante que merece análise é o fato de que a MP veio para dar termo à anarquia que se instaurou na área da organização desportiva das entidades, onde o princípio constitucional da autonomia desportiva é distorcido de tal forma que é capaz de transformar o futebol, atividade econômica por excelência, em atividade filantrópica, sem fins lucrativos, abrigando única e exclusivamente os cartolas corruptos e aproveitadores.
Este embate doutrinário acerca urgência da MP somente se observa somente em virtude do modelo sobre os quais os clubes de futebol se organizam, ou seja, algo ainda obscuro perante o ordenamento jurídico. Se, por um lado, a MP merece aplausos por, finalmente, estabelecer um modelo societário obrigatório aos clubes, por outro, infelizmente, atropela princípios legais e, pela sua redação falha, não atende por completo os anseios da comunidade desportiva brasileira. Apenas ressalte-se, un passant, que os clubes possuem esta autonomia (que, acreditem, não é tão ampla como os cartolas interpretam) por determinação da Constituição Federal (artigo 217, I) e da Lei 9.981/2000, que alterou o artigo 27 da Lei 9.615/98, facultando a organização das entidades dentro dos moldes societários ali descritos. A questão da autonomia será, todavia, assunto para outra oportunidade.
Passemos, agora, à análise dos dispositivos da MP, tecendo alguns comentários que se fazem necessárias e pontuando possíveis correções
Art. 1.$ A Lei n$ 9.615, de 24 de março de 1998, passa a vigorar com as seguintes alterações:
Art. 2.$ […]
XIII – da livre empresa no desporto profissional, caracterizado pela natureza eminentemente empresarial da gestão e exploração do desporto profissional. (NR)
Comentário: o art. 27, cuja redação foi incluída pela Lei 9.981/2000, indica três opções possíveis às entidades, as quais sejam a transformação em “sociedade civil de fins econômicos” (inciso I), em “Sociedade Comercial” (inciso II) ou a constituição de sociedade comercial que administre as atividades profissionais (inciso III). Ainda, diz que é facultada a transformação das atuais entidades em uma dessas formas. A inclusão deste inciso XIII cria mais um princípio, além dos outros doze que já existiam anteriormente em cada um dos incisos do artigo 2.$ da Lei 9.615/98. Determina, pois, que a gestão e exploração do desporto profissional deve ser empresarial. Silencia, entretanto, no tocante aos limites de atuação desta “livre empresa” e quais os requisitos para sua formação.
Luiz Antonio Grisard
é bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba, pós-graduando em Administração Esportiva pela Universidade do Esporte (PR), membro do IBDD.