Classes médias e mapa eleitoral

Gaudêncio Torquato

Se há uma conseqüência que desponta como estratégica para análise da moldura política do País, neste momento em que a aritmética de derrotados e vitoriosos ainda está sendo esmiuçada, é a interferência das classes médias na geografia eleitoral de 2004. Integradas ao perfil de Lula em 2002, desde então dele têm se distanciado por conta da visão egocêntrica de poder e do discurso messiânico do PT.

Naquela oportunidade, as classes médias, abandonando restrições históricas, juntaram-se aos setores mais empobrecidos para abraçar as causas do candidato eleito. No pleito deste ano, os grupamentos mais organizados do País, no Sul e no Sudeste, acenando com uma ponta de indignação, tiram os petistas de duas vitrines-modelo – São Paulo e Porto Alegre -, deixando-os também afastados de praças importantes da região, como Curitiba, Santos, Campinas e Ribeirão Preto. Os candidatos vitoriosos obtiveram, sem dúvida, boas votações no eleitorado pobre. O maior recado desta eleição, porém, está sendo dado por setores médios, que ensaiam a retirada do voto de confiança nos governos petistas. A perda do partido em relação aos votos obtidos em 2000 é de 21%.

A lógica que explica o veto de núcleos centrais do mapa eleitoral mais racional do País exibe, entre as razões, a auto-suficiência do discurso e da ação político-governamental que exclui a possibilidade de inserção de outros atores no processo decisório. A onisciência do petismo não admite contestações, sua palavra é a última. Essa verticalidade impregna administrações petistas nas três esferas governamentais, e tal fato é perceptível por cidadãos esclarecidos. Além do projeto de poder, as gestões insistem no tom de uma nota só, dando ênfase à inclusão das periferias – o que é justo e nobre -, mas desprezando insatisfações das classes médias, jogando-as no limbo. A inexistência de vasos comunicantes com o centro da sociedade gerou imenso vácuo nos limites petistas. Por isso a sigla está sendo empurrada para os fundões do País. É o efeito "pedra atirada no meio da lagoa": quem bate de frente em quem tem a força de gerar influência vai para as margens.

Eis por que pedaços da geografia social começam a recompor a antiga forma, depois de esperarem a caravana de mudanças. Por verificar que seus interesses não têm sido compreendidos, grupamentos centrais, resgatando o sistema de referências, interferem no processo eleitoral com um voto que conota protesto contra o caráter petista de governar. Trata-se do primeiro aviso, depois da vitória de Lula, de que a montanha de esperanças erguida não está conseguindo suplantar o vale da mesmice. Alguém poderá objetar: o governo federal não foi avaliado pelos eleitores. Em termos. Na campanha paulistana, o voto também se estendeu ao governo Lula, até porque não havia como separar a figura do presidente colada todo tempo à candidata petista. E não é bem correto enxergar na superioridade tucana em matéria de votos (25.617.145 contra 17.055.262 do PT) apenas a qualidade dos candidatos do PSDB. Houve, sim, um voto contra o PT em todos os níveis. Um voto que também se expressa no fortalecimento de três partidos localizados no espaço central-esquerdo do arcoideológico (PDT, PPS e PSB). Ou seja, a feição "esquerdista" do PT, bastante corroída, divide espaço com partidos aparentados, alguns com imagem até mais autêntica.

Aliás, a ampliação da esfera esquerda não radical permite constatar que também aí aparece o olho crítico de perfis com maior presença em conglomerados médios. Significa um avanço da racionalidade sobre as bases emotivas, ainda mais quando se nota clara sinalização do eleitorado contra velhos costumes e carcomidas estruturas. Artimanhas e invencionices do marketing também foram rejeitadas pela peneira ética que varreu o País. É a certeza de que novos sinais começam a balizar a operação política, convertendo interesses em direitos, acendendo pequenas fagulhas de civismo e forçando partidos à reestruturação.

O impacto da ação centrífuga promovida pelas classes médias criará ondas que chegarão à orla congressual. O Brasil pós-eleitoral, com um sistema de poder mais equilibrado entre as siglas, assume feição de traços menos contrastantes, implicando maior descentralização dos pólos de poder e, conseqüentemente, menor capacidade do PT de passar o rolo compressor sobre a atual base aliada. Esta, por sua vez, usará o contrapeso adquirido em votação expressiva (quase 50 milhões de votos) para ditar exigências complexas. No parlamento, o instrumento da verticalização, pelo qual se estabelece a vinculação entre as alianças partidárias nas eleições para governos estaduais, Senado, Câmara e assembléias legislativas, deverá merecer ampla discussão e terá boas condições de ser derrubado. Os partidos certamente votarão pela liberdade de decidir sobre alianças e atores nas eleições de 2006. Além disso, o estatuto da fidelidade partidária está mais do que maduro para ser aprovado e funcionará como alavanca contra a pressão de quem possui a chave do cofre. E o financiamento público de campanha ganhou mais adeptos ante a escalada financeira bancada pelo PT nas eleições.

Os ganhos maiores, porém, ficam na esfera social, em função do papel civilizatório – o de construção da cidadania ativa – desempenhado no processo eleitoral pelas classes médias, bem mais substantivo que a missão salvadora a que se reservou um partido que começa a envelhecer precocemente. O PT ainda não anotou que a recriação da República é um exercício permanente da democracia e parte do pressuposto de que interesses egoístas devem ceder lugar a interesses coletivos bem compreendidos, como tão bem descreve Tocqueville em seu ensaio sobre a democracia na América. E, nesse processo de recriação, não há dono da verdade.

Gaudêncio Torquato é jornalista, professor titular da USP e consultor político. E-mail: gautor@gtmarketing.com.br

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