Marta Morais da Costa (PUCPR/UFPR)
Ao iniciar a colaboração nesta página, a pauta era ?leitura e cidadania?. Mesmo sem usar os costumeiros salamaleques oferecidos à menção da palavra/conceito cidadania, tão vulgarizada e mal-atendida na sociedade brasileira atual, tenho procurado não distanciar-me da proposta inicial e buscado na literatura (e em seus exemplos concretos), na experiência de vida e de magistério, na atenção ao desenrolar de fatos e das vidas ao meu lado, e procurei discorrer sobre os diferentes modos pelos quais a cidadania se presentifica. Ou deveria.
A etimologia da palavra é latina. Qualquer bom dicionário a identifica: vem de civitas, civitatis, do latim. Foi palavra adotada pelo povo, em substituição à elitizada urbs. Como curiosidade, no século XIII era grafada çibdade (como que a querer incorporar a desprezada urbe, representada pela consoante intrusa) e no século XV, escrevia-se sidade. Nossas crianças, em sua ignorância gráfica, muitas vezes re-encontram a História: quantos deles, em fase adiantada da escolarização, ainda mantêm o ç e o s? Erram a letra e o tempo histórico.
Cidadão era, portanto, o habitante da cidade, no gozo dos direitos civis e políticos, e sujeito aos deveres inerentes a sua qualidade civil, sempre sob o poder do Estado. Excluíam-se aqueles que ou não habitavam a Cidade-estado, ou viviam em escravidão. A contaminação de sentidos acabou por produzir um conceito que o respeitado Dicionário Houaiss assim enuncia: cidadão é ?aquele que goza de direitos constitucionais e respeita as liberdades democráticas?.
Seus direitos estão atrelados ao Estado e seu dever básico é o respeito à liberdade, mesmo que o termo democracia seja da maior instabilidade histórica, política e social. Na proposta do projeto de leitura, concebido nesta página, nós, articulistas, vamos tentando ilustrar modos através dos quais podemos manifestar, em gestos e palavras, a tão falada e pouco exercitada cidadania. Quase inexistente para os ?cidadãos? e menos ainda para o ?Estado?.
Há um texto extraordinário de Ítalo Calvino, editado na Itália em 1972, e só publicado no Brasil em 1990, ah, nosso crônico atraso! intitulado As cidades invisíveis. É o relato de Marco Pólo, histórico explorador de terras do século XIV, ao Imperador Kublai Khan a respeito das cidades que visitou em sua viagem de descobertas. As descrições são poemas sobre a utopia de viveres cidadãos diferenciados e sobre os símbolos da vida contemporânea. No livro, cada cidade é única, toda imagem é poética, toda interpretação remete ao desejo de estar além dos limites geográficos, culturais, de sociedade, pessoais e íntimos do leitor. As cidades estão agrupadas sob diferentes funções e modos de ser. No conjunto A cidade e as trocas, há um relato sobre os costumes da cidade de Eutrópia (os nomes são criações instigantes do escritor). Nela, quando o tédio do trabalho, dos parentes, da casa, da rua, das obrigações sociais se tornam insuportáveis, os habitantes mudam-se para uma cidade vizinha ?que está ali à espera, vazia e como se fosse nova. […] Assim suas vidas se renovam de mudança em mudança.? Até que, na nova cidade, tudo volte a ser tedioso como na anterior. O patrono de Eutrópia é Mercúrio, ?deus dos volúveis?.
Esta fábula sobre cidade e cidadãos pode associar-se rápida e eficazmente a nossas leituras. Acomodamo-nos a elas de tal forma que o tédio da repetição nos invade sorrateiramente. E, quando temos visão crítica, nos flagramos em algum tempo repetindo, acomodados, limitados, imunes a textos provocativos. Talvez porque o problema esteja conosco, em nossa individualidade possível, na submissão à vontade do Estado, representado também na instituição literária com seus cânones e medições volúveis de qualidade.
No entanto, escapar à mesmice, que leva ao tédio, é fácil. Crie ou filie-se a um grupo de leitura. Convide a participar leitores atentos (em número restrito, mas de formação profissional e gosto pessoal diferentes, para que todos possam contar e partilhar sua interpretação). O local? Qualquer sala com algum conforto. Escolham, de comum acordo, textos para compor um repertório e a agenda. Definam a periodicidade dos encontros. Escolham um moderador para dirigir os trabalhos e manter o fio da leitura. E ponham-se a ler e trocar, democraticamente, os significados encontrados para aquele texto. Creiam-me, é uma fascinante atividade de leitura e propicia um crescimento pessoal imensurável.
Não há poder, não há verdade, não há sentido único, não há monotonia. O grupo, em suas diferenças, recria o status de cidadania da leitura. Todos trazem sua contribuição e o texto sai enriquecido. A troca inicia-se tímida e, aos poucos, fica acalorada porque, com ousadia e sinceridade, os leitores revelam forças e fraquezas e, generosamente, afirmam a natureza e a riqueza da leitura compartilhada.
O texto de hoje representa uma homenagem aos amigos do grupo das segundas-feiras na PUCPR. Estamos em atividade contínua desde 1997. Algumas pessoas mudaram de cidade profissional e intelectual, novas pessoas as substituíram. Todas elas, no entanto, fazem parte da história desse grupo persistente de leitores. O bastão mudou de mãos, mas não mudou o caminho em que ele é passado aos que chegam. Aprendemos uns com os outros, exercendo direitos e usufruindo os benefícios de leitores que, quando socializam os sentidos conferidos aos textos, vivem a leitura cidadã.
Obrigada pelo compartilhamento ao Jamil e à Jane, às duas Veras, à Regina, à Cleide. E a todos os que, durante mais tempo, ou efemeramente, passaram pelo grupo. Ler foi nosso alimento, nosso desafio e, muitas vezes, nosso remédio. Por isso, a leitura enriqueceu, e continua a iluminar, nosso cotidiano na cidade da mente.