Falemos mais da prática e menos da gramática. No passado, os cheques eram ordens de pagamento à vista. O portador poderia comparecer ao banco e lá sacar o valor nele contido. As dívidas a prazo eram traduzidas por notas promissórias e duplicatas.

Havia relativa segurança. Civil, em matéria de promissórias e duplicatas. E penal, no que se refere aos cheques sem fundos, cuja emissão era punível, além de poder encerrar, em todo o sistema bancário, as contas dos emitentes. Eles não mais poderiam se servir do sistema financeiro. A gramática não mudou. Só a prática. Nos dias de hoje, os títulos de crédito foram substituídos pelos cheques ditos “pré-datados”. Há quem os chame de “pós-datados”, o que dá na mesma, pois têm prazo para seu pagamento. E isso transformou-se em transação comum nos negócios.

Com essa distorção da chamada ordem de pagamento à vista, ele vem se desmoralizando dia a dia. Desmoralização que se agrava com o golpe da sustação. Paga-se com cheque e, sem motivos ou por motivos falsos, susta-se o pagamento, comunicando essa decisão ao banco. E, com relativa facilidade, o estabelecimento de crédito aceita essa ordem de sustação. O antes respeitado cheque está perdendo credibilidade e já há quem queira cheque visado, ou seja, aquele que o banco garante o seu pagamento, ou mesmo pagamento em dinheiro. Ou cheque bancário.

Mas há mais. A Serasa, empresa de análise de crédito, informa que em janeiro deste ano o número de cheques sem fundos devolvidos bateu recorde. Foram 15,6 para cada lote de mil compensados. A notícia não informa quantos eram pré-datados. Parece que a maior chuva de cheques sem fundos, voadores, foi de pagamentos à vista. Ou que deveriam ser à vista.

A análise do problema leva a conclusões que transcendem o problema em si, para revelar outros: as causas dos cheques sem fundos são muito mais graves e maiores. Os motivos foram os juros elevados, o desemprego alto e a queda na renda dos consumidores. Por que o recorde em janeiro? É que em janeiro os orçamentos das famílias ficam mais apertados. Primeiro, vencem as contas do mês de dezembro, aquelas das festas, presentes e outras que fazem a alegria no Natal, mas não têm fundos para pagar. Depois, no começo do ano, surgem os impostos e taxas, como o IPVA, o IPTU e tantas outras siglas, que mais parecem sopa de letrinhas. E ainda o material escolar e as matrículas das crianças.

Um poeta já escreveu: “Nunca verás país como este”. Pelo menos em matéria da quantidade de impostos e do seu peso sobre os orçamentos familiares e empresariais, realmente nunca se verá país como o Brasil. Isso tudo leva ao aumento dos cheques sem fundos. Em dezembro, a média era de 13,9 cheques sem fundos para cada mil compensados. Em janeiro deste ano, 14,2. Desde o início do estudo da Serasa, em 1991, o pico do calote ocorreu em maio do ano passado, com 17,6 cheques sem fundos para cada mil.

A Serasa considera que “somente a melhora da conjuntura, quanto à geração de emprego, queda dos juros e recuperação da atividade econômica, poderá trazer algum alívio para o consumidor”. E menos cheques sem fundos. Mas os analistas estão menos otimistas do que a turma do governo. Consideram que a queda nas taxas de juros, interrompida sob protestos, poderá até continuar, mas lenta e gradativamente. A criação de novos empregos, se houver, também será lenta e gradativa. E a lavoura dos cheques sem fundos continuará bem irrigada.

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