continua após a publicidade

Certamente, o último tópico de discussão de quem queira constituir uma sociedade seja a dissolução parcial, por se tratar de um tema que cria uma atmosfera negativa justamente no momento inicial da sociedade. Entretanto, ao constituir uma sociedade, esse é um assunto tão importante quanto qualquer outro e, para isso, algumas cautelas podem ser tomadas para evitar eventuais desconfortos.

O fato é que, historicamente, a empresarialidade se tornou mais palpável no Brasil na década de 1950, com o plano de crescimento desenvolvido no Governo de Juscelino Kubitschek. Desde então, tem ganhado força e vem, até os dias de hoje, alavancando o nosso desenvolvimento econômico. E, para viabilizar esse cenário, contamos com um conjunto de normas que regulamenta a Ordem Econômica e Financeira e que nos permite o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, ressalvados os casos legalmente previstos[i].

A liberdade de exercer qualquer atividade econômica, juntamente com a liberdade de se associar, formam o respaldo legal para a intenção de criar uma sociedade, ou seja, a vontade dos sócios em cooperar, mútua e economicamente, para constituir e manter uma atividade econômica rentável.

Todavia, em paralelo à vontade e à liberdade de se associar, existem situações em que esse cenário deixa de existir ou se torna impraticável.

continua após a publicidade

A legislação brasileira permite tanto o exercício do direito de retirada, como outras hipóteses que configuram a resolução da sociedade em relação a um sócio. As hipóteses de resolução da sociedade em relação a um sócio estão previstas nos artigos 1.026, 1.028 a 1.032 e 1.085 do Código Civil, podendo ocorrer por (i) vontade do sócio; (ii) exclusão judicial do sócio por falta grave ou incapacidade superveniente; (iii) exclusão do sócio remisso da sociedade; (iv) falência do sócio; (v) liquidação de suas quotas por execução do credor[ii]; ou (vi) morte do sócio.

Patrimonialmente, como regra geral, o resultado da resolução da sociedade em relação a um sócio, gera a obrigação de levantamento da quantia devida a esse sócio é definida em apuração de haveres, que tem como consequência a dissolução parcial da sociedade, com o devido pagamento das quotas liquidadas.

continua após a publicidade

Primeiramente, há de considerar que os haveres do sócio que sai da sociedade, independentemente das hipóteses de sua saída, serão apurados de acordo com a realização das quotas, ou seja, proporcionalmente ao montante integralizado.

Ademais, a apuração de haveres e a liquidação das quotas ocorrerão em conformidade com o disposto no contrato social ou em Acordo de Quotistas, se existente, situações, porém, que não limitam a discussão pelas medidas judiciais e, não havendo disposição acordada entre os sócios, serão ser observadas as disposições legais.

O momento da apuração de haveres se verifica quando ocorre a desvinculação do sócio na sociedade, quais sejam, (i) quando a sociedade toma conhecimento da vontade do sócio, mediante notificação; (ii) no trânsito em julgado da decisão, em caso exclusão judicial do sócio por falta grave ou incapacidade superveniente ou discussão judicial da apuração dos haveres; (iii) na deliberação social no caso de exclusão do sócio remisso da sociedade; (iv) na declaração de falência do sócio; (v) na decisão que determinar a liquidação das quotas por execução do credor; ou (vi) no dia do óbito, em caso de morte do sócio.

Deve-se observar que a liquidação das quotas ocorrerá conforme a situação patrimonial da sociedade, considerando-se a época da resolução parcial da sociedade, que será verificada em balanço especialmente levantado. Assim, mesmo havendo os balanços e as demonstrações financeiras periódicos, elaborados se assim o Contrato Social estabelecer, no caso de resolução parcial da sociedade, um balanço patrimonial será especialmente levantado para apuração dos haveres, denominado Balanço de Determinação, tendo como base a data do evento.

O principal fundamento para a apuração dos haveres, extrajudicial ou judicial, é de que deve ser pago o valor econômico justo, contudo, a problemática surge na mensuração para se chegar nessa condição. O sócio não pode, na dissolução parcial da sociedade, receber valor diverso (nem maior, nem menor) do que receberia, como partilha, na dissolução total[iii].

De certo, a situação patrimonial, a ser observada para a apuração de haveres, conforme o artigo 1.031 do Código Civil, não se refere ao patrimônio líquido da sociedade. E mesmo observando as Normas Brasileiras de Contábeis, a avaliação patrimonial ainda terá em pauta discussões acerca do valor atualizado e real dos bens componentes do ativo, os critérios de avaliação dos intangíveis, a consideração das perspectivas de rentabilidade, a receita dos contratos de execução continuada e outros temas representam os pontos de embate do conflito.

A avaliação patrimonial utiliza-se costumeiramente de alguns critérios, como o método de avaliação contábil (Book Value), levando-se em consideração o valor da empresa por meio dos números contábeis, e a avaliação por fluxo de caixa descontado, em que considera os fluxos de caixa futuros que a sociedade irá produzir, com base na capacidade de geração de riqueza futura. A avaliação contábil pode se tornar imprecisa no momento em que o lançamento contábil não é feito corretamente, de toda sorte, a avaliação por fluxo de caixa descontado tem sido utilizada em operações societárias, como fusões e aquisições, e pode refletir um critério justo se for realizada adequadamente.

O prazo legalmente estabelecido para pagamento das quotas liquidadas, conforme seus valores devidamente apurados extrajudicial ou judicialmente, é de 90 (noventa) dias da liquidação, caso não haja estipulação diversa estabelecida entre os sócios. Ademais, haverá a aplicação de juros moratórios e correção monetária da data da apuração dos haveres até o efetivo pagamento[iv].

A Ação de Dissolução e Liquidação de Sociedades ainda é disciplinada pelo Código de Processo Civil de 1939 (Decreto-Lei nº 1.608/39) em seus artigos 655 a 674, mantidos em vigor no Código de Processo Civil de 1973 (Lei nº 5.869/73), em seu artigo 1.218, inciso VII, e poderá ser proposta nos casos de discussão da apuração dos haveres, de exclusão do sócio por falta grave ou incapacidade superveniente, ou para solicitar a retirada da sociedade que opera a prazo determinado, provando justa causa.

Ocorre que, em razão da complexidade da apuração de haveres, bem como dos trâmites judiciais, que geram processos que perduram por até 10 (dez) anos, muitas sociedades tem estabelecido a arbitragem como forma de solução de conflitos envolvendo a apuração dos haveres, por meio da inclusão de cláusula compromissória em seus atos constitutivos. Tal medida visa garantir agilidade na decisão, a adoção de critérios técnicos por especialistas, bem como o sigilo acerca da discussão que pode, por vezes, prejudicar a marca e a confiabilidade da empresa e de seus sócios.

Neste diapasão, certo é que, previamente à constituição de uma sociedade, os sócios devem iniciar e concluir a discussão sobre eventuais problemas que, fatalmente, atingirão não somente o vínculo profissional, mas também o pessoal. E, além de levantar essas problemáticas, devem também estabelecer com clareza como pretendem resolvê-las.

O melhor mecanismo é a previsão formal, em Acordo de Sócios ou no próprio Contrato Social, da forma de apuração dos haveres, além de como e por quem deve ser realizada essa apuração, inclusive quanto aos bens intangíveis, ao tempo de análise, ao prazo e à forma de pagamento.

A ausência de desses critérios claros, pautados em boa-fé, servirá apenas de fonte às incertezas, aos questionamentos e, como consequência, à demora em uma solução comum que melhor possa, nessa situação, atender aos interesses de todas as partes.    


[i] Conforme parágrafo único do artigo 170 da Constituição Federal.

[ii] Conforme artigo 1.026 do Código Civil, situação em que permite a liquidação das quotas por credor particular de sócio.

[iii] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. 2º volume, 7ª edição, São Paulo: Saraiva, 2004, p. 470.

[iv] Nesse aspecto, foram julgados o Recurso Especial 271930, da 4ª Turma, Ministro Relator Sálvio Figueiredo Teixeira, julgado pelo Superior Tribunal de Justiça em 19 de abril de 2001 e publicado em 25 de março de 2002; e o Recurso Especial 110303/MG, 3ª Turma, Ministro Relator Eduardo Ribeiro, julgado pelo Superior Tribunal de Justiça em 15 de abril de 1997 e publicado em 19 de maio de 1997.

 

Letícia Fernanda Nakamura, advogada da área Contratual e Societária do Manhães Moreira Advogados Associados.

 

Amanda Araújo, sócia da área Contratual e Societária do Manhães Moreira Advogados Associados.