Após 27 anos, os filhos do presidente Tancredo Neves resolveram recorrer ao Poder Judiciário para ter acesso às copias dos prontuários médicos contendo os processos e procedimentos referentes ao atendimento do ex-presidente na ocasião de sua morte.
Para tanto, utilizaram-se de um dos institutos das Garantias do Estado Democrático de Direito, contido nas alíneas a e b do inciso LXXII do artigo 5º da Constituição Federal: o habeas data.
Vale lembrar que o habeas data figura ao lado de outros importantes “Remédios Constitucionais”, como o habeas corpus e do mandado de segurança.
Se concedido pelo Judiciário, no entanto, o habeas data servirá “para assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público” e/ou “para a retificação de dados, quando não se prefira fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou administrativo“.
O habeas data, regulado pela Lei 9.507 de 12.11.1997, tem o objetivo de “liberar” o conhecimento de informações, possibilitando a sua retificação ou anotação traduzindo os elementos que compõem as bases de dados (data), instituto que possui origens nos Estados Unidos em 1974, Portugal em 76 e na França e Espanha em 78.
O interesse dos filhos do Presidente é legítimo, afinal de contas, a morte de Tancredo no dia 21 de abril de 1985, logo após o fim do movimento das “Diretas Já simboliza o encerramento de um longo período de 21 anos de ditadura militar, em circunstâncias que nunca foram devidamente esclarecidas à população brasileira.
Por outro lado, ao conceder o direito aos familiares do Presidente, o Judiciário gerará ao Conselho Federal de Medicina (CFM) e ao Conselho Regional de Medicina (CRM) Unidade Brasília, que são os impetrados do Habeas Data, descumprimento de um dever legal de guardar o sigilo profissional dos médicos ao repassarem as informações e documentos para uma futura investigação.
O Código Penal assim obriga os profissionais ao devido sigilo sobre as informações obtidas no exercício profissional na seção “Dos crimes contra a inviolabilidade dos segredos” nos artigos 153 e seguintes como: “art. 153 – Divulgar alguém, sem justa causa, conteúdo de documento particular ou de correspondência confidencial, de que é destinatário ou detentor, e cuja divulgação possa produzir dano a outrem.”
Ainda, no Código Civil, artigo 229, onde “ninguém pode ser obrigado a depor sobre fato: I – a cujo respeito, por estado ou profissão, deva guardar segredo”, no Código de Processo Civil, na subseção da admissibilidade e do valor da prova testemunhal, há a previsão do artigo 406 – “A testemunha não é obrigada a depor de fatos: II – a cujo respeito, por estado ou profissão, deva guardar sigilo“, no Código de Ética Médica, no art. 11, está previsto que: “O médico deve manter sigilo quanto às informações confidenciais de que tiver conhecimento no desempenho de suas funções. O mesmo se aplica ao trabalho em empresas, exceto nos casos em que seu silêncio prejudique ou ponha em risco a saúde do trabalhador ou da comunidade.“, art. 102 dentre outros.
Enfim, não será fácil a decisão do magistrado que está diante dos olhos da sociedade e por outro lado, diante do dever de respeitar a legislação.
O trabalho jornalístico que ganhou mais destaque ao presente caso foi de Luiz Mir, que atualmente está preparando o segundo volume do livro “O paciente: o caso Tancredo Neves“, por tratar de uma investigação histórica contemporânea, nesse intenso processo de redemocratização ocorrido nas últimas décadas.
Tancredo foi internado por causa de fortes dores abdominais no Hospital de Base em Brasília, a partir daí, em 14 de março de 1985, passou por inúmeros médicos, foi submetido a sete cirurgias, em contextos nebulosos até o seu atestado de óbito por infecção generalizada pouco mais de um mês, emitido pelo Instituto do Coração (Incor) do Hospital das Clínicas de São Paulo.
Teria sido o Presidente da República mal diagnosticado ou mal operado? Desde sua morte, surgiram muitas versões para o caso, até mesmo de um suposto assassinato daquele que deveria ser o “presidente da redemocratização”, título que ficou com seu vice, José Sarney.
Relatos históricos do filho Tancredo Augusto Neves narram bem situações polêmicas como o episódio que seu pai foi levado por engano ao centro cirúrgico, passou mal e teve de circular pelos corredores do Hospital de Base de maca, coberto por um lençol para que não fosse reconhecido pelos populares que estavam no local, sem qualquer tipo de segurança, e, ao chegar à sala de cirurgia, relata que haviam políticos trajando roupas de médico para assistirem à operação.
Esse é mais um caso que a Justiça, simbolizada pela Deusa Grega Têmis, empunhando a balança em uma das mãos e a espada na outra, terá de desvendar sem cometer injustiças.
Marcelo Roland Zovico é Advogado, Mestre e Doutorando pela PUC/SP, advogado criminalista do escritório Simões Caseiro Advogados e Professor de Gestão Ambiental, pesquisador PDEE/CAPES na Universidade del Salento na Itália.