Caso Suzane Richthofen: Justiça que demora é justiça em mora

Suzane confessou que ajudou a matar os seus pais. Isso ocorreu em 2002. Estava presa desde a época do crime. Mais de três anos passaram-se sem ser julgada. O STJ (Sexta Turma), coerentemente, acabou revogando sua prisão cautelar. Aparentemente o fundamento da revogação seria a falta de fundamentação. Na verdade, estávamos diante de um patente excesso de prazo na formação da culpa. Ninguém pode ficar preso três anos sem julgamento! A mídia, tal qual a população leiga, em lugar de gritar contra o absurdo da demora da Justiça brasileira, acionou suas baterias contra a libertação de Suzane.

Enquanto não ajustarem o foco, pouca coisa pode mudar. Pelo discurso midiático, não haveria nenhum problema em o preso cautelar aguardar o julgamento de um processo três, quatro ou mais anos. Que absurdo! Em lugar de procurarem descobrir as causas do problema (por qual motivo Suzane ainda não foi a julgamento, por que a Justiça não prioriza os casos de réus presos etc.), jogam mais lenha na fogueira verborrágica dos desvairados defensores da lei e da ordem.

Não é tão difícil entender o que ocorreu no caso de Suzane: não existe pena sem processo. Todo processo deve seguir rigorosamente o que está estabelecido nas leis (elaboradas de acordo com o Estado Constitucional e Democrático de Direito). Quem é preso cautelarmente continua presumido inocente. Deve ser julgado o mais pronto possível (em prazo razoável, como diz a CF, depois da Emenda Constitucional 45/2004, assim como a Convenção Americana de Direitos Humanos). A instrução do processo tem que terminar celeremente. Havendo excesso de prazo na formação da culpa, a Justiça tem que liberar o preso (independentemente do crime cometido, das qualidades da pessoa presa etc.).

Nem o princípio da democracia indireta (maiorias nos parlamentos) nem o da democracia direta (população, de onde emana todo poder) pode preponderar sobre as regras de garantias. Miguel Reale Júnior (O Estado de S. Paulo de 03.07.05, p. J4) e Marco Aurélio Mello (Folha de S. Paulo de 03.07.05, p. C3) foram didáticos em suas explicações: ninguém pode ficar preso indefinidamente, sem ter nenhuma perspectiva de julgamento! O Estado que não está aparelhado convenientemente não pode exigir que seus cidadãos fiquem presos, por longo tempo, enquanto aguardam o julgamento de um processo.

A tortura que o mau funcionamento da Justiça brasileira gera (para muitas pessoas) não pode perpetuar. Casos "chocantes" como o da Suzane deveriam servir de pretexto para um maior aprofundamento da reforma do Judiciário brasileiro. Os presos têm que ter prioridade absoluta na Justiça! Já é chegado o momento de introduzirmos no nosso ordenamento jurídico algo semelhante ao que se faz no Paraguai: o tempo máximo para julgar um preso lá é de três anos. Depois disso o processo é extinto. O Estado não pode se apossar ilegalmente do tempo do cidadão preso, por mais que tenha praticado um crime aberrante (Aury Lopes Júnior, Introdução crítica ao processo penal, 2.ª. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005).

O processo não pode se transformar numa pena antecipada. Todo réu presumido inocente tem direito de ser julgado em prazo razoável. Não é razoável ficar preso três anos, aguardando um julgamento. Beccaria, em 1764, já se insurgia calorosamente contra "o cruel tormento da incerteza": "o cidadão detido só deve ficar na prisão o tempo necessário para a instrução do processo".

A demora no julgamento constitui a Justiça em mora (em atraso). Isso viola a dignidade da pessoa, sobretudo se está presa, incrementa a estigmatização, faz desaparecer provas, gera impunidade e escancara a sua lentidão, com a conseqüente perda de confiança em sua capacidade de gerenciar conflitos penais. A liberação de Suzane não significa que ela ficará impune, mas essa sensação está generalizada. Nosso Judiciário precisa ser totalmente repensado. A mídia, míope como se apresenta em tantas ocasiões, não pode se perder com discursos falaciosos e vagos, desfocados da origem da questão. Devemos ir à fonte, do contrário, nunca veremos nenhuma mudança séria e profunda.

Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito penal pela USP, secretário-geral do Ipan (Instituto Panamericano de Política Criminal), consultor e parecerista, fundador e presidente do Ielf Pro OMNIS: 1.ª rede de ensino Telepresencial da América Latina www.proomnis.com.br

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