Pedrinho nasceu dia 20/01/1986, no Hospital Santa Lúcia (em Brasília-DF). No dia 21 de janeiro, com 13 horas de vida, foi tirado do quarto da maternidade por uma mulher, que se dizia assistente social. Dezesseis anos passaram-se e agora se descobriu que ele está sob o poder de quem o levou do hospital. Os pais biológicos querem tê-lo em sua companhia. Mas ele vem preferindo (até aqui) ficar com a mãe não-biológica, embora não recuse os pais biológicos. Esse o fato.
Quanto ao seu enquadramento penal correto (tipificação) devemos concluir que o crime cometido foi o de subtração de incapazes (CP, art. 249), não o de seqüestro (CP, art. 148). Houve um crime contra o pátrio poder (art. 249), que era punido (na época dos fatos) com pena de detenção de 2 meses a 2 anos. Sendo crime instantâneo (ainda que de efeito permanente), conta-se a prescrição da data da consumação (data do fato: 21.01.1986). A pena máxima de dois anos prescreve em quatro anos (CP, art. 109). Portanto, já em 1990 o crime estava prescrito.
A pena para o crime de subtração de incapazes, até 1990, era muito baixa (e desproporcional). O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), que prevê o crime de “subtrair criança ou adolescente ao poder de quem o tem sob sua guarda em virtude de lei ou ordem judicial, com o fim de colocação em lar substituto” (art. 237 – Pena de dois a seis anos de reclusão), corrigiu a anomalia.
Mas esse dispositivo legal não tem incidência no caso Pedrinho porque o ECA é de 1990 e o crime em questão é de 1986. Nenhuma lei penal nova pode retroagir para alcançar fato passado (princípio da anterioridade da lei penal).
A diferença entre a subtração de incapazes (subtrair menor de 18 anos ao poder de quem o tem sob sua guarda) e o seqüestro reside na intenção do agente: provada que a intenção não era a de privar a vítima de sua liberdade de locomoção, sim, ao contrário, de tê-la para si, de criá-la como se sua fora [ou, na linguagem do ECA, de colocá-la em lar substituto] o crime é o subtração de incapazes, não o de seqüestro (RT 698, p. 327).
Quem retira menor de quem o detém legalmente com o intuito de tê-lo para si, de lhe proporcionar um futuro, de lhe dar educação etc. [de colocá-lo em família substituta] comete subtração de incapaz, não seqüestro (RT 419, p. 103). A jurisprudência é torrencial e pacífica. Na doutrina o entendimento não é diferente.
Para se entender a teoria da tipificação penal podemos nos valer do seguinte: imagine uma mesa totalmente perfurada, sendo que cada perfuração tem a forma mais variada possível (um losângulo, um triângulo, um quadrado, um retângulo, um círculo etc. etc.). Em Direito penal o fato é típico (formalmente) quando se encaixa num dos artigos da lei (leia-se: quando a figura se enquadra numa das perfurações da mesa). Se a figura constituída por um círculo nunca vai se adaptar à perfuração do quadrado, o fato da subtração de incapaz não pode jamais ser adequado ao tipo legal do seqüestro.
Por mais chocante e dolorosa que possa parecer a solução jurídica correta do caso Pedrinho (crime de subtração de incapaz, já prescrito há muitos anos), nada há que se possa fazer (juridicamente) de diferente. A anomalia da pena antiga (de dois meses a dois anos) só foi corrigida em 1990 (com o ECA, que não pode ter efeito retroativo). Estamos, ademais, regidos pelo Estado de Direito, fundado na legalidade (e na Constituição).
Não se pode “torcer” o Direito para se buscar justiça no caso concreto! O princípio da legalidade no Direito penal nos conduz sempre a uma interpretação restritiva da lei penal. Não é possível, portanto, analogia contra o réu.
Em suma, no caso Pedrinho houve subtração de incapaz e o crime já está prescrito. Sou favorável a uma reforma do Código Penal para se prever que a prescrição nesse tipo de crime (subtração de incapazes) só venha a ser contada a partir da data em que a autoria do crime torna-se conhecida (é o que já acontece hoje – mais ou menos – com o registro falso de filho alheio como próprio). Enquanto tal reforma não acontece, temos que aplicar a lei (lege habemus).
O único crime ainda punível (que é punido com pena de 2 a 6 anos de reclusão) é o de registro de filho alheio como próprio. E ele não está prescrito. Justamente porque nesse caso só se conta (a prescrição) a partir da data em que o fato torna-se conhecido (CP, art. 111, IV).
Cabe ainda sublinhar o aspecto processual da questão: não sendo o caso de seqüestro e já estando prescrito o crime de subtração de incapazes, a competência para julgar o registro de filho alheio como próprio não é do juízo de Brasília, sim, de Goiânia.
Luiz Flávio Gomes
(falecom@luizflaviogomes.com.br). Doutor em Direito penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito penal pela Faculdade de Direito da USP e Coordenador Geral dos Cursos Prima-Ielf (cursos ao vivo e via satélite por tv digital para todo o país – www.ielf.com.br).