Cesare Battisti, pelo que foi noticiado, teria participado de um movimento armado de esquerda, na Itália (movimento Proletários Armados pelo Comunismo-PAC), nos anos setenta. O governo, na época, não comungava com os valores comunistas.

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Desde o final dos anos sessenta e até o princípio dos anos oitenta (famosos “anos de chumbo”), o mundo ficou dividido ideologicamente (e aberrantemente) em duas facções: “esquerda e direita”.

A esquerda se dizia progressista. A direita era intitulada como conservadora. A esquerda pregava (com distintos matizes) o comunismo. A direita lutava pelo capitalismo. Tudo transcorria sob o manto da chamada “guerra fria” (que só acabou com a queda do muro de Berlim, em 09.11.89).

No nosso ambiente cultural a direita era ostentada (normalmente) pelos militares. Os progressistas de esquerda entraram em conflito com eles. Cesare Battisti é um “companheiro” (da luta armada).

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Quem é do governo ou atua em nome dele pratica crimes contra a humanidade (que são imprescritíveis, segundo regras da ONU de 1946). Atuam em nome de uma ditadura (e perseguem os valores ditatoriais).

Matam, seqüestram, somem com pessoas. Isso é o que explica, por exemplo, que praticamente todos os militares que participaram (destacadamente) do regime militar argentino já tenham sido penalmente condenados.

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Quase todos estão sendo submetidos a julgamento (e indo para o cárcere). Os crimes contra a humanidade não prescrevem e não estão sujeitos à anistia (consoante decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos).

Quem não é do governo ou não atua em nome dele, nesse contexto de conflito ideológico armado, pratica delitos políticos (que são anistiáveis e prescritíveis). Mas enquanto não anistiado e não prescrito, o autor do delito deve responder por ele.

Esse é o caso de Cesare Battisti: teria praticado crimes políticos (dentre eles quatro assassinatos), mas não foi anistiado. E os delitos não prescreveram (porque na Itália os crimes punidos com prisão perpétua não prescrevem). Conclusão: para a Justiça italiana Battisti está em débito (e teria que cumprir lá prisão perpétua).

A Itália pediu ao Brasil a extradição dele. O STF, depois de autorizar, por cinco votos a quatro, referida extradição (Ext 1085), acabou deliberando (também por 5 a 4) que a última palavra sobre a entrega ou não do italiano cabe ao presidente da República.

Que os crimes de Battisti foram políticos não há a mínima dúvida (a configuração do crime político, como disse o Min. Marco Aurélio, é “escancarada”). Tiveram (indubitavelmente) motivação política. Foi um erro o STF afirmar, por maioria, que não houve crime político. Negaram o óbvio (e, porque não dizer, o óbvio ululante).

E por que negaram o óbvio? Porque a CF brasileira proíbe (terminantemente) a extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião (CF, art. 5º, inc. LII). A proibição é absoluta. Qual a sua razão? Evitar a perseguição de quem pensa de forma diferente.

Aqui reside mais um erro nesse assunto: a proibição constitucional não deveria ser absoluta. O fundamental é saber se o extraditando (no momento da extradição) corre ou não o risco de ser perseguido, maltratado, desrespeitado em seus direitos etc.

No caso Battisti o Tribunal Europeu de Direitos Humanos disse que o processo contra ele foi justo. Hoje a Itália (apesar do seu exótico Primeiro Ministro, Silvio Berlusconi) não apresenta o mesmo cenário de perseguição (e de intransigência) política dos anos 70 ou 80.

Não se pode afirmar que a Itália hoje (em regra) seja um país de exceção, onde não são observadas as garantias fundamentais do acusado. Se a CF brasileira não fosse tão rígida, nesse ponto, caberia ao STF analisar se o réu teria ou não tratamento desigual ou arbitrário (no país requerente).

Considerando-se que nossa CF engessou o assunto, não restou outra alternativa à (convicção da) maioria do STF que cassar o ato de refúgio dado pelo Ministro da Justiça e deferir a extradição, porém, negando o caráter político dos delitos atribuídos a Battisti (o que é uma indescritível aberração). Qual argumento: “crime de sangue” não pode ser político. Nada mais equivocado (e destituído de razoabilidade).

Qual seria o caminho correto? Pensamos que o correto seria a CF brasileira flexibilizar o inciso LII para admitir a extradição do estrangeiro por crime político quando verificadas as condições de garantias (e de respeito ao condenado ou processado).

Não faz muito tempo, o STF, num caso de extradição para a Colômbia, quando nesse país o Executivo praticou ingerências no Judiciário, não concedeu a extradição por entender que o país requerente não reunia condições necessárias para o respeito das devidas garantias. Aqui está o cerne da questão.

O crime político, em princípio, deve mesmo merecer tratamento especial (porque ninguém pode concordar com as ditaduras ou autoritarismos). Porém, desde que não anistiado e não prescrito, e desde ainda que o país requerente tenha condições de oferecer todas as garantias ao condenado ou processado, não se justifica o indeferimento da extradição.

Como a constituição brasileira é rígida, o STF, por maioria, acabou negando o óbvio ululante: que os crimes de Battisti não foram políticos. Claro que foram. Mas se a Itália, hoje, reúne condições políticas para respeitar os direitos dos presos ou processados, não deveria haver impedimento constitucional para a extradição. Para driblar essa peremptória proibição, cinco Ministros da nossa Corte Suprema rasgaram e enterraram o conceito de crime político.

Nosso professor de Direito Penal na Universidade de São Paulo, Manoel Pedro Pimentel, dizia: quando o direito não é justo, o juiz justo ou torce os fatos (para fazer justiça) ou torce o direito. No caso torceram o conceito de crime político (dizendo que crime de sangue não pode ser político).

Erraram! Houve crime político, mas na sensibilidade deles é uma situação de injustiça o réu devidamente condenado não responder pelos seus delitos. O senso de justiça está correto.

Mas para se tentar chegar ao resultado almejado (que Battisti vá para a Itália para cumprir a sua pena) atropelaram o conceito de crime político. Com isso o STF, por cinco votos a quatro, cassou o refúgio concedido pelo Ministro da Justiça (Tarso Genro).

Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG. Foi promotor de Justiça (1980 a 1983), juiz de Direito (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001).www.blogdolfg.com.br