Casar-se e descasar-se: liberdade e intervenção estatal

A ?revolta dos fatos contra os códigos? tem eclodido em variados momentos da história jurídica brasileira contemporânea. Não raras as vezes, normas obsoletas deixam de ser aplicadas pelos tribunais, que firmam jurisprudência em sentido contrário ao estabelecido pela lei. Todavia, nem sempre o caminho da reconstrução do Direito pelo conjunto de decisões reiteradas dos tribunais sobre determinado tema é o mais adequado para os câmbios que se fazem inadiáveis.

Por vezes, a alteração legislativa é imprescindível, porque a lei ultrapassada é cogente, e vincula-se a questão de interesse público, sendo impossível de alteração pela via jurisprudencial. Nestas circunstâncias, a intervenção atualizadora ou reformadora do legislador é a melhor opção.

A regulação da separação e do divórcio no ordenamento jurídico brasileiro traz em si diversas restrições bem localizadas historicamente. Da luta que se travou entre divorcistas e antidivorcistas, no Congresso Nacional, no século passado, década de setenta, ainda, estão bem presentes, no sistema jurídico, as marcas das concessões e limites ao desfazimento das relações matrimoniais. A Constituição de 1988 permitiu alguns avanços em relação aos estritos termos da Lei do Divórcio, Lei 6.515/1977, todavia, o Código Civil de 2002, que regulou a matéria de direito material, como um todo, praticamente repetiu os termos da Lei do Divórcio, sem realizar qualquer alteração significativa, o que é de se lamentar.

Nas micro-reformas que vem sofrendo o Código de Processo Civil é que se pode perceber uma primeira mudança significativa em relação à separação e ao divórcio. A recente alteração legislativa, embora simples, importa significativo avanço na percepção jurídica da questão, especialmente, quanto à intervenção estatal.

A Lei 11.441, de 4 de janeiro de 2007, que alterou artigos do Código de Processo Civil, atende à antiga e reiterada demanda da sociedade pela simplificação dos procedimentos de separação e divórcio. A Lei, também, facultou o inventário e partilha sem a necessidade de intervenção judicial, desde que cumpridos determinados requisitos. Interessam apenas, no momento, as alterações relativas ao procedimento de separação judicial e divórcio.

O casamento, no ordenamento jurídico brasileiro, é negócio jurídico solene e, para sua extinção, vários obstáculos sempre foram antepostos. Basta lembrar que, nos casos de anulação de casamento, quando vigente o Código Civil de 1916, a nomeação, pelo juiz, de um curador do vínculo era questão de ordem pública. O movimento antidivorcista, nas décadas de 1960 e 1970, foi tão significativo, que a Lei do Divórcio de 1977 só veio a ser aprovada mediante uma série de concessões feitas aos setores mais conservadores.

O Código Civil de 2002, como anteriormente referido, não trouxe mudança substancial em relação à Lei do Divórcio. Perdeu-se grande oportunidade de adequação da lei à realidade sociocultural das famílias brasileiras contemporâneas. Porém, agora, a simples alteração promovida pela Lei 11.441/2007 traz indicativo, ainda que simbólico, de um afastamento do Estado de campo em que, de fato, não lhe competia ingerir.

Com a entrada em vigência da Lei que alterou o Código de Processo Civil, os cônjuges que não tiverem filhos menores ou incapazes, desde que atendidos os prazos legais, havendo entre eles acordo quanto aos termos da separação ou divórcio, poderão realizar o desfazimento da sociedade conjugal (separação) ou a dissolução do vínculo matrimonial (divórcio) por meio de simples escritura pública, com a assistência de advogado, mas sem necessidade de intervenção judicial.

No termo de acordo, que será reduzido a escritura pública por um notário com atribuição para tanto, devem constar os registros da partilha de bens, a pensão alimentícia, quando for o caso, e a manutenção ou não do nome adotado do outro cônjuge ao se celebrar o casamento.

Uma série de dúvidas surge em relação a esse novo procedimento que, certamente, desafogará em parte as Varas de Família. Segundo dados do IBGE, expressivo número de separações e divórcios, no Brasil, se processa pela via consensual. Não havendo filhos menores ou incapazes, a opção pela via extrajudicial parece mais conveniente e, se supõe, menos burocratizada. A experiência dirá, em futuro breve, se esta assertiva é verdadeira.

Para dirimir as dúvidas surgidas em relação ao procedimento, as Corregedorias dos Tribunais de Justiça têm emitido atos normativos. No Paraná, por exemplo, recentemente, a Corregedoria do Tribunal de Justiça fez publicar, no Diário da Justiça, o Provimento 110/2007, pelo qual promoveu alteração no Código de Normas, acrescendo Seção a um de seus Capítulos, denominada: Escrituras Públicas de Inventários, Separações, Divórcios e Partilha de Bens.

Ainda que a lacônica disposição legal de um único artigo, o art. 1.124-A do Código de Processo Civil, esteja trazendo uma série de dúvidas quanto à separação e ao divórcio por escritura pública, certo é que tal alteração legislativa pôs em relevo o tema do direito de descasar sem que o Estado se envolva neste ato. Dito de outra forma, os atos de casar e descasar dão-se na mesma instância, pela livre manifestação das partes, sem que estas tenham que convencer o juiz de que estão certas de sua decisão.

Para que se tenha idéia nítida da alteração, bastar recordar o disposto no § 1.º do art. 1.122, do Código de Processo Civil. Se a separação ou divórcio se der pela via judicial, em tese deve ser observado o seguinte rito: o juiz ?ouvirá os cônjuges sobre os motivos da separação consensual, esclarecendo-lhes as conseqüências da manifestação de vontade?. ?Convencendo-se o juiz de que ambos, livremente e sem hesitações, desejam a separação consensual, mandará reduzir a termo as declarações e, depois de ouvir o Ministério Público no prazo de 5 (cinco) dias, o homologará; em caso contrário, marcar-lhes-á dia e hora, com 15 (quinze) a 30 (trinta) dias de intervalo, para que voltem, a fim de ratificar o pedido de separação consensual?.

O novo procedimento extrajudicial é, ao menos, simbolicamente, sinal de afastamento da ingerência estatal, que hoje não mais se justifica, e de ampliação do exercício da liberdade dos cônjuges. Outras importantes superações da excessiva regulamentação da separação e do divórcio estão postas no horizonte do Direito de Família brasileiro contemporâneo, como, por exemplo: (i) a extirpação de prazo mínimo de casamento para a formulação do pedido de separação consensual atualmente, exige-se um ano de casamento; (ii) afastamento da culpa como critério para a dissolução do casamento; (iii) a possibilidade do divórcio direto, independentemente, de observância de prazo de separação de fato ou de separação judicial; (iv) o estabelecimento da separação chamada falência, como critério prevalente para a separação e o divórcio; (v) a realização de separação consensual por mera escritura pública, ainda que haja filhos comuns menores ou incapazes, desde que prévio acordo de guarda e de pensão de alimentos tenha sido referendado pelo Ministério Público. Quem sabe esta não foi uma pequena amostra de uma reforma mais abrangente que o futuro reserva ao sistema da separação e do divórcio?

Marcos Alves da Silva é professor de Direito Civil e coordenador do curso de Direito do UnicenP (Centro Universitário Positivo). Professor de Direito Civil do Curso de Direito da Unibrasil (Faculdades do Brasil). Advogado em Curitiba PR. Mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família IBDFAM.

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