Carne viva para os ossos do ofício I

Serviu-me de inspiração para escrever este artigo o trecho de um romance famoso, que causou muita polêmica devido ao tema em torno do qual o autor, um escritor de um estilo cuja elegância nos enleva, constrói a trama em que os protagonistas se vêem envolvidos. Trata-se de uma obra muito importante e o autor também, que inclusive escreveu outras obras, tais como blá, blá, blá… Desculpem, eu ia me esquecendo da obra referida e do contexto em que ela está cumprindo determinado papel. Mas antes de dar o nome do romance, vamos ao trecho mencionado:

Decidi também que qualquer coisa seria melhor para Lô do que a ociosidade desmoralizante em que ela vivia. Eu tentava persuadi-la a fazer uma porção de coisas, tantas que deixariam estupefato um educador profissional; mas, por mais que implorasse ou perorasse, nunca conseguia fazer com que ela lesse nada além das histórias em quadrinhos e dos contos publicados em revistas femininas. Qualquer obra literária de nível um pouquinho superior já tinha para ela o sabor de um dever escolar e, embora teoricamente disposta a desfrutar de livros tais como As mil e uma noites ou As mulherzinhas, Lô jamais admitiu ?estragar as férias? com empreitadas tão intelectuais.

Pelas pistas apresentadas no excerto, vocês já devem ter reconhecido o livro em questão. Como disse, é uma obra muito importante… Opa! Lá ia eu de novo desviando do que interessa. Aliás, o que é que realmente interessa com a literatura na escola? Interessa saber que a literatura é redentora?, que ela liberta (ainda que os escritores falem de uma necessidade que em alguns casos chega a ser opressora: escrever para não se desesperar)?, que ela nos resgata da ignorância?, que as obras são importantes (falei de novo nisso!)?, que elas captam um contexto histórico?, que não devemos confundir o autor com o narrador nem com o personagem principal? Sei que estou chateando a todos com essa enrolação, mas é justamente para ilustrar como parecem (a julgar pelo que dizem as pesquisas) ser as aulas que pretendem aproximar os jovens da literatura.

Tenho para mim que o problema da literatura na escola é de descompasso. Explico: o termo ?literatura? chega antes das histórias e as faz calar, esperar a sua vez. Primeiro, entender o que é a literatura; depois, fruir e usufruir de tudo aquilo que se diz dela.

Esse procedimento é bem retratado numa crônica de Fernando Sabino, cujo título (O afogado) dá uma idéia fiel de como deve se sentir o aluno frente à idéia de cornucópia de que o texto literário geralmente vem revestido: nele tudo cabe e tudo dele devo extrair a cada leitura. O relato de Sabino a que me referi tem início com uma conversa entre colegas sobre alguém que teria se afogado ?agorinha há pouco?. O personagem que presenciara o sinistro pôs-se a relatar o ocorrido. Começou a falar sobre um sujeito que lutava contra o afogamento na praia de Botafogo e vários carros paravam para assistir ao pleito do tal sujeito. E aproveitou para falar de uma batida de carros em decorrência da distração dos motoristas, ocasionada pela atenção dada ao afogado. Um dos presentes perguntou se essa batida tinha causado muitos estragos nos veículos, já que um deles era nada mais nada menos que uma Mercedes. A conversa prosseguiu sobre seguros e as dificuldades de provar a culpa em acidentes dessa natureza, até que o que iniciara o relato fez uma observação sobre o comportamento de um dos motoristas, o qual, embora tivesse sido o menos prejudicado, era o mais preocupado, mas que a preocupação não parecia ser com o carro. Sobre esse comportamento, realmente muito estranho, foram levantadas várias hipóteses: medo da polícia, pois talvez fosse um traficante ou tivesse roubado o veículo, tivesse um corpo no porta-malas… Enfim, tudo era possível, pois a falta de consideração com a vida humana nos dias de hoje é uma coisa preocupante. E a conversa ia já tomando outra direção, mais filosófica, quando todos perceberam que um dos colegas que estavam na roda não dissera nada até aquele momento, era o único a não participar do debate.

Nota

A essa altura, o leitor já deve estar curioso acerca do desfecho da história, mas, como anunciado no início, estas reflexões continuam na próxima edição deste caderno. Até lá.

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