Carne viva para os ossos do ofício (3.ª parte)

Que fique claro que não estou defendendo que a literatura deva ou não possa ser trabalhada em sala de aula, já que nem todos têm obrigação de ser consumidor de literatura. Como se diz popularmente: ?Nada ver?. O que tenho buscado são formas de tanto quanto possível desmistificarmos não só a literatura, mas todos os conteúdos que são objetos de ensino formal. No caso da literatura, antes de trazermos à consciência todo o contingente de mundos imbricados na trama de um romance, de um conto ou poema, há o componente objetivo, concreto, no qual todo esse universo pode ser plasmado: o enredo, o final da história, enfim, os pontos palpáveis que dão visibilidade a todo o invisível que queremos que os alunos descortinem no contato com a literatura. 

Tentando esclarecer um pouco o que disse ao longo destas reflexões, vou lançar mão (seguindo a linha que venho tentando expor aqui, de uso da literatura para algum fim, para poder falar dela) do poema O mito em carne viva, de João Cabral de Melo Neto:

Em certo lugar de Castela, num dos mil museus que ela é, ouvi uma sevilhana, a quem pouco dizia a Fé, ante uma Crucificação comovida dizer a emoção mais nua e crua, corpo a corpo, imediata, ao pé, sem compunção fingida, sem perceber sequer a névoa que a pintura põe entre o que é e o que é:

Lo quié no habrá sufr?io e?ta mujé!

Eis a expressão em carne viva, e por que viva mais ativa: nua, sem os rituais ou as cortinas que a linguagem traz por mais fina.

A Crucificação para ela não era o que um pintor num tempo: para ela era como um cinema narrando um acontecimento, era como a televisão dando-o a viver no momento.

Nesse poema, todo o contexto histórico, religioso, moral etc. envolvido na história, da qual a crucificação é um dos episódios, é precedido do que há de mais palpável para os seres humanos: o sentimento do qual ele está mais próximo, algo que ?cutuque? uma experiência que o leitor já tinha e que, naquele momento da leitura, mostrou-se maior ou menor do que parecia.

Em suma, é preciso mobilizar o aluno para que ele vá aos textos literários, e não mandar que vá e nem trazer-lhes a literatura. Mobilização significa criar um propósito para leitura, seja por curiosidade, indignação, estranhamento, especulação… Criar cenários didáticos (sofisticação do termo ?aula?) em que a literatura emirja como o recurso que poderia ajudar melhor que nenhum outro a dar continuidade à atividade que está sendo realizada, vivida naquele momento.

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