A consolidação do Ministério Público, como instituição essencial à função jurisdicional do Estado, exige constante e permanente aperfeiçoamento da teoria do Direito Constitucional.
A defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis fez com que o Ministério Público se tornasse uma das instituições mais importantes do país. Pouco mais de duas décadas depois da promulgação da Constituição Federal, são sensíveis os avanços jurídicos e sociais obtidos por intermédio do Ministério Público.
Contudo, a concessão e a efetivação de direitos fundamentais não são espontâneas, não decorrem da ordem natural das coisas. Trata-se de uma história de lutas e embates contra os detentores do poder. A alteração do status quo, para que os fundamentos éticos e sociais contidos na Constituição fossem concretizados, requer o fortalecimento do Ministério Público, como instituição nacional.
O combate às constantes ameaças de desestruturação do Ministério Público, vindas dos setores políticos mais arcaicos – comprometidos com a dilapidação do patrimônio público e a negação dos compromissos éticos e sociais – depende da defesa ferrenha dos princípios, garantias e prerrogativas institucionais presentes no ordenamento jurídico brasileiro.
O Ministério Público, para fazer a defesa dos interesses sociais, precisa de autonomia política e funcional. Tal independência é pressuposto objetivo da atuação segura dos membros do Ministério Público na exigência das promessas constitucionais ainda não cumpridas.
Esse fortalecimento institucional passa pela redefinição dos princípios da unidade e da indivisibilidade previstos no artigo 127, par. 1º, da Constituição Federal.
O Ministério Público, no Brasil, está sujeito aos mesmos princípios, garantias e prerrogativas previstas na Constituição. É uma instituição única, embora subdividida entre o Ministério Público da União (composto pelo Ministério Público Federal, do Trabalho, Militar e do Distrito Federal e Territórios) e dos Estados.
Não há hierarquia entre os ramos do Ministério Público. O que difere a atuação de cada um deles é, tão-somente, a distribuição constitucional de atribuições. A definição da atuação do Ministério Público brasileiro segue, basicamente, as regras de fixação da competência jurisdicional.
Como todo membro do Poder Judiciário possui jurisdição, independentemente da comarca, seção judiciária ou tribunal em que atue, pois o que difere é apenas a competência, o Ministério Público, sob o aspecto funcional, é único, desempenhando as mesmas funções institucionais (art. 127, caput, CF). O que diferencia os membros do Ministério Público é, repita-se, apenas as atribuições (competências), não as funções. Aliás, o exercício dessas funções, desde que exista pertinência de atribuições, pode ser desempenhado perante qualquer órgão do Poder Judiciário. Tanto é assim que o artigo 5.º, par. 5.º, da Lei 7.347/85 admite, expressamente, o litisconsórcio facultativo entre os Ministérios Públicos da União, do Distrito Federal e dos Estados, na defesa dos interesses e dos direitos coletivos lato sensu.
O artigo 93, inc. V, da Constituição Federal, com a redação dada pela Emenda Constitucional 19/98, abre o debate sobre o caráter nacional da magistratura. Ao prever a estrutura judiciária nacional, para fins de fixação dos subsídios dos membros do Poder Judiciário, suscita diversos argumentos favoráveis ao fortalecimento da independência política, da homogeneidade salarial e da necessária isonomia entre os membros da magistratura federal e estadual.
O Supremo Tribunal Federal (na AO n. 584-1/PE, Pleno, rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 27/06/03) afirmou que a nova redação do artigo 93, inc. V, da CF, ao não fazer mais alusão à “carreira”, substituindo-a por “categorias de estrutura judiciária nacional”, vinculou, para efeitos remuneratórios, toda a magistratura nacional, independentemente do nível organizacional, se federal ou estadual. O intuito da Constituição é favorecer, pela homogeneidade salarial, a independência do Poder Judiciário e o seu caráter nacional, sem desprezar a autonomia estadual e o princípio federativo.
Mais recentemente, o Supremo Tribunal Federal (na ADI-MC n. 3854/DF, Pleno, rel. Min. Cezar Peluso, DJ 29/06/07) reforçou esse entendimento. Considerou inconstitucionais os artigos 2º da Resolução 13/2006 e 1.º, par. ún., da Resolução n. 14/2006, editadas pelo Conselho Nacional de Justiça, que estabeleciam tetos remuneratórios diferenciados para os membros da magistratura federal e estadual. Entendeu que a distinção era arbitrária, por ofender o caráter nacional do Poder Judiciário e o princípio constitucional da isonomia. O Min. Cezar Peluso afirmou que “a promoção discriminatória de um grupo dentro da mesma classe funcional inculca e difunde a falsa idéia de uma superioridade de méritos dos magistrados federais, uma meritocracia artificiosa, porque, a despeito das altas qualificações dos membros da categoria, a conjectura não condiz com a homogeneidade teórica da instituição judiciária, nem encontra suporte na realidade. Ademais, essa idéia, por mais falsa que seja, desestimula vocações, avilta e deprime profissionais experimentados e encanecidos na arte de julgar, degrada e desprestigia a velha magistratura estadual, a que, por todos os títulos de seus afazeres seculares, o ordenamento jurídico comete o mais largo espectro de gravíssimas competências jurisdicionais, exercidas, não raro com inexcedível sacrifício e abnegação pessoal, por multiplicidade incomparável de órgãos dispostos e enraizados até nos mais longínquos e, às vezes, quase inacessíveis recantos do território brasileiro. E, mais do que os reflexos públicos de tão deprimorosa idéia, a discriminação induz situações irredutíveis a critérios de justiça funcional ou, quando menos, extravagantes, como a de servidores federais subalternos que podem perceber remuneração superior à de desembargadores dos tribunais de justiça, cujo presidente, é, na ordem constitucional, substituto e sucessor eventual do governador do Estado”.
Sustentando a ausência de fator de descriminação legítimo entre as atividades desempenhadas pela magistratura federal e estadual, já que a função jurisdicional rigorosamente desenvolvida por qualquer um dos magistrados é a mesma, a Associação dos Magistrados Brasileiros vem ingressando com diversas ações diretas de inconstitucionalidade, para fazer prevalecer a estrutura judiciária nacional. Na ADI 4199-1, afirma a inconstitucionalidade do artigo 1.º, par. 1.º, da Lei Complementar n.º 355, de 22 de janeiro de 2006, do Estado do Espírito Santo. Tal disposição prevê que os “Juízes de Direito perceberão seus subsídios mensais na forma de escalonamento definido na Lei Complementar n. 234, de 18.4.2002 – Código de Organização Judiciária do Estado do Espírito Santo”. Por sua vez, esse Código, no artigo 125, par. 1º, determina que os Juízes de Direito perceberão seus estipêndios, na proporção de 5% (cinco por cento) a menos para cada entrância, tomando-se como base o estipêndio do Desembargador, de forma gradual e sucessiva. Ainda, o artigo 3.º desse Código determina que as comarcas devem ser classificadas em 04 (quatro) entrâncias. Assim, a considerar a diferença de 5% para cada entrância, um Desembargador percebe 90,25% dos subsídios de Ministro do Supremo Tribunal Federal, um Juiz de 4.ª Entrância, 95% do que recebe um Desembargador, um Juiz de Direito de 3ª Entrância, 95% do que um Juiz de 4.ª Entrância, um Juiz de Direito de 2.ª Entrância, 95% do que um Juiz de 3ª Entrância e, por fim, um Juiz de Direito de 1ª Entrância e um Substituto, 95% do que um Juiz de 2.ª Entrância.
O escalonamento, previsto no artigo 1.º, par. 1.º, da Lei Complementar n. 355, de 22 de janeiro de 2006, do Estado do Espírito Santo, conforme argumenta a Associação dos Magistrados Brasileiros, viola o artigo 93, inc. V, da Constituição Federal. Afinal, a estrutura judiciária nacional possui apenas três categorias (Juiz Substituto, Juiz de Direito e Desembargador). Logo, a estrutura judiciária estadual capixaba, que possui cinco categorias (Juíza de 1.ª, 2.ª, 3.ª e 4.ª Entrância e Desembargador, bem como equipara o Juiz Substituto ao de 1.ª Entrância), contraria a estrutura judiciária nacional presente no artigo 93, inc. V, da CF. Isso porque não permite a homogeneidade salarial, na medida em que supera a diferença máxima de 10% entre as categorias da estrutura judiciária nacional, resultando na violação do princípio da isonomia entre as magistraturas estadual e federal.
Portanto, advoga que as entrâncias estaduais não podem ser consideradas categorias da estrutura judiciária nacional, sob pena de infringir o artigo 93, inc. V, da Constituição Federal. O critério de entrâncias pode ser estabelecido pelos Estados-Membros, em razão do princípio federativo e da autonomia dos estados. No entanto, não pode ter efeitos no escalonamento de subsídios, servindo apenas como critério de subdivisão política, econômica e jurisdicional das comarcas, com reflexo na promoção dentro da carreira.
O mesmo raciocínio pode ser desenvolvido no âmbito do Ministério Público. Os membros do Ministério Público estão sujeitos ao teto constitucional, por força dos artigos 128, par. 5.º, inc. I, letra “c”, 37, inc. X e XI e 39, par. 4.ª da Constituição Federal. O Procurador Geral da República, ao representar todo o Ministério Público brasileiro (aliás, não fosse assim o artigo 46 da Lei Complementar n. 75/93, falaria apenas no Ministério Público da União), junto ao Supremo Tribunal Federal, percebe os mesmos subsídios dos Ministros do STF. O Procurador Geral da República exerce a chefia do Ministério Público Federal, mas também agrega a função de representação nacional do Ministério Público. Tanto é que somente ele é quem tem legitimidade para proceder ao controle abstrato de constitucionalidade de leis federais e estaduais junto ao Supremo Tribunal Federal, bem como pode representar para a intervenção federal, nos Estados e no Distrito Federal, para assegurar a observância dos princípios constitucionais previstos no artigo 34, inc. VII, da Constituição Federal. É por representar toda a instituição que o artigo 130-A, inc. I, da Constituição Federal lhe determina a função de presidir o Conselho Nacional do Ministério Público. Logo, assim como o Judiciário deve ter como teto os subsídios do Ministro do Supremo Tribunal Federal, tem o Ministério Público, de caráter nacional, de se pautar na remuneração do Procurador Geral da República. Afinal, é ele quem representa todo o Ministério Público, junto a mais alta Corte do país, sendo o membro permanente da instituição e essencial à função jurisdicional no Excelso Pretório. Os membros do Ministério Público integram um mesmo órgão e estão sujeitos a direção única do Procurador Geral da República, que representa a instituição no Supremo Tribunal Federal e preside o Conselho Nacional do Ministério Público. Isto não viola o princípio federativo e a autonomia dos estados. Cada Estado-Membro possui o seu Ministério Público, unidade distinta do Ministério Público da União, e está sob a chefia do respectivo Procurador Geral de Justiça.
Contudo, tal como o caráter nacional da Magistratura, não pode haver discriminação legítima entre os membros do Ministério Público da União e dos Estados. As funções a serem desempenhas pelo Ministério Público, conforme determina o artigo 127, caput, da Constituição Federal, são as mesmas para todos os ramos da instituição, diferindo apenas as atribuições. As garantias e as prerrogativas constitucionais também são idênticas. Fere o princípio constitucional da isonomia e estrutura nacional do Ministério Público a percepção de subsídios absolutamente discrepantes entre os membros do Ministério Público. Não há igualdade jurídica quando se trata desigualmente os iguais sem que exista um fator de descriminação legítimo.
O princípio da simetria, aliado aos da razoabilidade e proporcionalidade, recomenda que os mesmos parâmetros constitucionais, presentes no artigo 93, inc. V, da Constituição Federal, sejam aplicados ao Ministério Público, conforme determina o artigo 129, par. 4.º, com a redação da Emenda Constitucional n.º 45/2004. Afinal, a homogeneidade salarial, reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, entre a magistratura federal e estadual, está calcada na estrutura judiciária nacional. Ora, a mesma estrutura nacional está presente no Ministério Público, já que o artigo 127, par. 1º, da Constituição Federal afirma que são princípios institucionais a unidade e a indivisibilidade. A ratio essendi da regra constitucional do artigo 93, inc. V, da CF pode ser extraída da exegese do artigo 127, par. 1º, da CF. Mas também os mesmos argumentos utilizados pelo Supremo Tribunal Federal e pela Associação Brasileira dos Magistrados se aplicam ao Ministério Público. Isonomia entre as funções, autonomia política, pela homogeneidade salarial, e atuação objetiva na realização da justiça são temas correlatos à Magistratura Estadual e ao Ministério Público dos Estados.
O Conselho Nacional do Ministério Público também tem ressaltado o sentido nacional da instituição. No Pedido de Providências n. 899/2009-15, considerou legítima a percepção de diferenças remuneratórias decorrentes do recálculo da parcela autônoma de equivalência (PAE). Tratava-se de analisar a correção da decisão do Procurador Geral do Estado do Rio de Janeiro que determinou o pagamento da PAE, nos anos entre 1994 até 1997. O benefício tinha como fundamento a decisão monocrática do Min. Nelson Jobim, na ação originária n. 630/DF, ajuizada pela Associação dos Juízes Federais do Brasil, na qual se habilitou, como assistente, a Associação dos Magistrados Brasileiros. Essa decisão foi seguida pelo Conselho da Justiça Federal, no Processo n. 2006.160031, e pelo Superior Tribunal de Justiça, no Processo Administrativo n. 3579/2008. Tal direito também se estendeu ao Ministério Público da União, pelo Conselho Superior do Ministério Público da União, e à magistratura do Estado de Minas Gerais, pelo Conselho Nacional da Magistratura (Processo de Controle Administrativo n. 442). O CNMP considerou a legalidade do pagamento, tendo o Conselheiro Cláudio Barros Silva asseverado que “não há dúvidas de que o Ministério Público, como o Poder Judiciário, tem caráter unitário e nacional”, para concluir: “Reconhecendo o caráter nacional do Ministério Público, inscrito no texto da Constituição Federal pelo princípio da unidade, e entendendo-se que o pedido da Associação dos Juízes Federais – Ajufe, circundado pela Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB, beneficiou, também, a magistratura dos Estados, por força do caráter nacional da magistratura, é reconhecido, também, em favor do Ministério Público o seu caráter unitário e nacional e, conseqüentemente, estender-se o benefício concedido pelo Ministério Público da União a todos os membros do Ministério Público dos Estados (…)”.
Com efeito, o caráter nacional do Ministério Público tem se mostrado um importante argumento de consolidação institucional. Independência política e funcional somente se consegue com autonomia financeira. A unidade do Ministério Público passa pela isonomia entre o Ministério Público da União e dos Estados. É pelo reconhecimento da existência das mesmas funções, garantias e prerrogativas constitucionais que é possível debelar as assimetrias institucionais. A homogeneidade de subsídios, baseada em uma estrutura nacional do Ministério Público, é uma forma de promover a igualdade jurídica e a melhor atuação do Ministério Público nos Estados.
No entanto, o caráter nacional do Ministério Público não se resume ao aspecto salarial nem se reduz a uma reivindicação meramente corporativista.
O discurso da unidade do Ministério Público evita que a instituição fique sujeita ao arbítrio de políticos contrários à atuação independente e pró-ativa do Ministério Público, na tutela dos direitos fundamentais e na implementação das políticas públicas. O fortalecimento do Ministério Público, de um modo geral, e dos Estados, de maneira especial, é essencial na promoção da defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Valorizar quaisquer dos membros do Ministério Público é assegurar o cumprimento da Constituição, garantindo a eficiência do Estado e a construção de uma sociedade mais justa e solidária.
Eduardo Cambi é Promotor de Justiça do Estado do Paraná. Mestre e Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Pós-doutor pela Università degli Studi di Pavia. Professor da Universidade Estadual do Norte do Paraná e da Universidade Paranaense.