Os livros e, no nosso caso, em especial, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador possuem, conforme Sloterdijk, a função do humanismo, ou seja, a comunicação propiciadora de amizade realizada à distância. Uma amizade que transcende fronteiras e na qual o remetente da carta-livro não sabe quem serão, efetivamente, os verdadeiros destinatários, nem o sentido que darão ao conteúdo. Esta carta-livro – Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador -, pois, foi lida em terra tupiniquim e gerou posições antagônicas. Afinal, Canotilho mudou sua concepção em relação à Constituição Dirigente? A resposta que ficaria no âmbito das pretensões intersubjetivas de validade argumentativa, na espécie, poderia – em tese – ser salva pela resposta do remetente. E isto foi tentado pelo `grupo de amigos brasileiros’ que se reuniu em Curitiba para discutir, não só entre eles, mas também e principalmente com o próprio Prof. Canotilho, através de uma “vídeo-conferência além-mar”.
A leitura do livro resultado deste Encontro (Miranda Coutinho, Jacinto Nelson de [org.]. Canotilho e a Constituição Dirigente. Rio de Janeiro: Renovar, 2003), deixa antever – até por quem não estava lá – a riqueza singular do momento. Não pretendo fazer uma balanço do acontecido, até porque Eros Roberto Grau, Néviton Guedes e Jacinto Nelson de Miranda Coutinho já o fizeram.
Quero aproveitar o que uma escuta flutuante, vinda de outro lugar – da psicanálise – pode, talvez, indicar. Por ela, sabe-se que a verdade do sujeito, apontam Freud e Lacan – este último quem aproximou a psicanálise da linguagem -, surge nos lapsos, atos falhos, chistes, não sendo o discurso racional vertido em texto (lido e relido antes da publicação), definitivamente, seu lugar. Partindo desta idéia e não sem motivo, pinçando a resposta à questão formulada por Agostinho Ramalho Marques Neto, o qual colocou o dedo na ferida ao indagar sobre o sujeito herdado da modernidade, o sujeito da unidade, para a qual o Prof. Canotilho respondeu: “No fundo, eu perdi o sujeito e não o encontro.”
Assim é que neste instante, neste lapso da resposta imediata, via teleconferência, Canotilho deixa antever que o homem da modernidade, o da razão plena, feneceu, foi-se… Mas ele sabe, também, que no imaginário jurídico sua figura é a de um `ideal de eu’ e ele precisa carregar este fardo; os sujeitos do Direito são, ainda, sujeitos da modernidade, neuróticos por excelência, precisando de um líder, no que também a psicanálise teria muito a mostrar. Então, num discurso de dois mundos – o Português e o Brasileiro – o mestre luso conserva sua obra dizendo que lá ela de certa forma morreu, enquanto aqui, ela ainda vive. Esta distinção, forma clássica de salvamento dos discursos diante de aporias, deixa, pelo menos, os brasileiros com a expressão de felicidade: A Constituição Dirigente não morreu para nós, ela constitui, e foi o Prof. Canotilho quem disse, está aqui, ohhh! Num país em que a “concretização da Constituição” é uma tarefa a se realizar, por certo, esse aval do Prof. Canotilho continuará sendo a nossa “broxa”, como diria Miranda Coutinho. Vale destacar que nos dias 27-28/01/1004, em Coimbra, houve mais um “Encontro Luso-Brasileiro de Professores de Direito”, parceria exitosa da UFPR/Universidade de Coimbra, no qual o Prof. Canotilho, discutindo o texto: “A Constituição Européia entre o Programa e a Norma”, deixou assentado que: “a Constituição Européia procura reaglutinar um esquema dirigente através do direito constitucional.” Os ventos, parecem, mudaram. De qualquer maneira, sem termos nos tornado órfãos, os ideais emancipatórios da modernidade não foram enterrados, e diz Canotilho: “estes ideais não se enjeitam, porque os filhos não se abandonam.” Obrigado, Prof. Canotilho, por não nos deserdar!
Parece, mesmo assim, que o Prof. Canotilho fica um tanto quanto angustiado de manter este discurso `lá/aqui’, e penso – olha a pretensão – que sua proposta poderia evoluir por dois caminhos inseridos na linguagem pós-metafísica (depois do giro lingüístico) cuja escolha, por certo, não me cabe: a) A teoria Constitucional poderia se aproximar do pensamento de Dussel, no qual é fixado um critério material de verdade (vida, sua produção, reprodução e desenvolvimento) para somente após se discutir as possibilidades das pretensões de validade da(s) Teoria(s) da constituição em cada contexto, sem desprezar, por certo, a factibilização das propostas Constitucionais. Com isto, sua teoria não restaria abalada no cerne, abandonando-se, ademais, o recurso da divisão entre os passageiros da 1.a classe (centro) e 2.a classe (periferia), isto é, do `Mito da Modernidade’, da mesma maneira exposto por Dussel; b) A segunda é se indagar sobre as possibilidades do sujeito moderno em face da complexidade de Morin, de certa forma invocada por Fachin, e se a democracia almejada, longe dos discursos procedimentalistas, pode se articular no fio da navalha da linguagem a partir da ontologia heideggariana (Streck).
Por fim, caso tudo que falei tenha sido apenas uma projeção sem sentido para os outros, terei pelo menos a companhia imaginária de Barthes que disse: “A vida é, assim, feita a golpes de pequenas solidões”.
Alexandre Morais da Rosa é doutorando (UFPR), mestre (UFSC) e juiz de Direito (SC).