A cada 36 horas, ao menos uma mulher é vítima de feminicídio em São Paulo. Em 2018, 148 assassinatos foram registrados já no boletim de ocorrência como derivados de violência doméstica ou por “menosprezo ou discriminação à condição de mulher”.

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O número de mortes é 12,9% maior do que o registrado no ano anterior (131) e mais do que o dobro do que o observado em 2016 (70), embora a quantidade de homicídios dolosos tenha diminuído no Estado. Os dados foram levantados pelo Estadão Dados com base em boletins de ocorrência (BO) da Secretaria de Segurança Pública (SSP).

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Apesar da alta, especialistas afirmam que o número de casos deve ser maior. Um dos motivos é a tipificação nem sempre ser apontada já no registro do BO. “É obrigatório constar no boletim se a pessoa foi morta por feminicídio”, afirma Luiza Nagib Eluf, advogada criminalista e procuradora aposentada. “Mas nem todos os funcionários da Justiça e da própria delegacia se atualizaram em relação a isso. Na dúvida, fica só o registro de homicídio.”

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O número de casos de feminicídio no Estado de São Paulo representa 27% do total de assassinatos de mulheres (548), o que não inclui latrocínio (roubo seguido de morte) e homicídio culposo (sem intenção). O número é semelhante à média nacional de 24,8% (1.133 feminicídios no total), de acordo com o 12.º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública com dados de 2017.

Pesquisadora da entidade, Cristina Neme pontua que o porcentual está abaixo das estimativas dos especialistas em segurança de que feminicídios respondem por pelo menos metade do total dos assassinatos de mulheres. “Hoje há maior percepção em relação ao fenômeno, um maior cuidado no registro do dado. Com a investigação, (o número) tende a aumentar.”

De 2015, a Lei do Feminicídio transformou esse tipo de homicídio em crime hediondo, com pena de 20 a 30 anos de reclusão e que pode ser aumentada de 1/3 a 1/2 em determinados casos (como quando a vítima é gestante, por exemplo). Lançadas em 2016 pela Organização das Nações Unidas Mulheres (ONU Mulheres) e pelo governo brasileiro, as Diretrizes Nacionais do Feminicídio apontam que toda investigação da morte ou tentativa de morte de uma mulher com indícios de violência deve ter a “perspectiva de gênero” como um dos principais enfoques.

“Há um direcionamento diferente da investigação (quando a vítima é mulher). A perícia no local do fato é diferente e no corpo também, porque se busca não só a causa da morte, mas se verifica se há um histórico de violência”, diz Valéria Scarance, coordenadora do Núcleo de Gênero do Ministério Público de São Paulo.

Em nota, a SSP afirma que os delegados passaram a incluir a qualificadora de feminicídio já em 2015 e que o assunto foi abordado em treinamento no ano seguinte. Diz ainda que “em muitos casos” só é possível determinar a motivação durante as investigações. Além disso, reitera que criou, em 2018, o Protocolo Único de Atendimento, “que estabelece um padrão de atendimento para melhor acolher as vítimas e aprimorar as investigações e coleta de provas”.

Características

O levantamento feito pelo jornal O Estado de S. Paulo revela diferenças no perfil das vítimas de feminicídio em relação às mortes das mulheres em geral. Em 66% dos feminicídios identificados no BO nos últimos três anos, a mulher foi morta dentro de casa. O padrão é diferente da média dos assassinatos de mulheres, em que 64% das vezes acontece em via pública.

Segundo Valéria, o feminicídio é um “crime muito particular, que quase sempre tem uma assinatura”. Em geral, afirma, o assassinato é motivado pela não aceitação do rompimento do relacionamento com a vítima ou por ciúmes. Além disso, costuma ter “grande crueldade”, como repetição de golpes. “Por isso, a necessidade de a investigação ser direcionada, para que esses aspectos não deixem de ser notados.”

Para especialistas, grande parte dos feminicídios é uma “morte anunciada”. Estudo do Ministério da Saúde divulgado pelo jornal neste ano aponta que três a cada dez mulheres já tinham histórico de agressão antes de serem mortas.

Este foi o caso de Daniele Cândido, de 21 anos, que foi estrangulada e morta pelo marido em outubro de 2018, em Votorantim, a 96 km da capital. O porteiro Danilo Cândido Costa, de 27 anos, irmão de Daniele, conta que não se conforma de ter deixado passar em branco o primeiro tapa no rosto que ela recebeu, há três anos. “Foi a primeira vez que ele a agrediu, e a gente deixou pra lá porque ela deu razão ao marido”, lamenta. Preso no dia seguinte ao assassinato, o rapaz confessou o crime e alegou que eles haviam brigado porque ela sentia muito ciúmes.

Prevenção

Políticas educacionais e de conscientização, além de ações para acolher e incentivar denúncias, estão entre os procedimentos que podem ser adotados para evitar o feminicídio. Também é importante que as estatística sejam fidedignas, pontua Giane Silvestre, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP). “O primeiro passo para políticas de prevenção é o diagnóstico do crime.”

Já Valéria ressalta a importância do acolhimento da vítima na Justiça, no sistema de saúde e na polícia. “É importante que a mulher seja bem recebida, não seja ridicularizada. Condutas que coloquem em cheque a palavra ou a vida da vítima podem fazer com que ela se retrate, o que pode levar a uma situação mais grave, até à morte.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.