Quando foi aprovado no vestibular da Fuvest, o estudante de História da Universidade de São Paulo (USP) Gilmar Luiz Brito, de 24 anos, se sentiu deslocado. Negro, de baixa renda e egresso de escola pública, logo percebeu que sua presença era exceção em meio aos outros. “Olhava para a universidade, para o meu curso, e via que os alunos vinham de escola particular. E eu, que estudei na rede pública, não estava habituado com a carga de leitura. Foi uma transição mais difícil”, conta.

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Um em cada três ingressantes da USP (36,9%) já vem da rede pública; e 19,3% são pretos, pardos ou indígenas (PPI). O avanço foi significativo. Há dez anos, as taxas eram de 22,8% e 12,9%, respectivamente. E uma nova geração de alunos que entrará nos próximos anos na universidade deverá mudar ainda mais esse quadro. Até 2021, a instituição deverá ter 50% de seus ingressantes vindos de escola pública, 37% deles PPI – número proporcional a essa parcela da população no Estado de São Paulo.

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“Trabalhei desde o ensino médio para juntar dinheiro para o cursinho. Demorei três anos para chegar aqui”, afirma Brito, hoje no 4.º ano de seu curso. O universitário diz que teve sim de se esforçar mais do que os colegas para conseguir bom desempenho. “Foram necessárias horas a mais de estudo”, lembra.

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A reserva de vagas por meio das cotas, tema historicamente polêmico na instituição, ganhou espaço conforme faculdades como Direito e Medicina adotaram notas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) como forma de ingresso. Uma das primeiras tentativas de aumentar a inclusão se deu há dez anos, com a criação de um bônus no vestibular para alunos da rede pública. Mas apenas no dia 4 de julho deste ano o Conselho Universitário da USP aprovou o uso de cotas em todas as suas unidades.

O modelo ainda enfrenta resistência, embora especialistas e pesquisas de diferentes instituições apontem que a prática não leva à redução de qualidade no ensino. “Cotistas e não cotistas entram na universidade de forma competitiva”, diz o sociólogo e ex-presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) Simon Schwartzman, um dos maiores especialistas em educação no País.

A diretora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP Leste (Each), Maria Cristina Motta de Toledo, conta que a experiência única de sua unidade – hoje a USP Leste tem mais de 50% de seus alunos saídos da rede pública – mostra que o ingresso de estudantes com esse perfil não afeta o desempenho acadêmico. E a Each ainda não utiliza cotas, apenas o bônus na nota dos candidatos. “Com o tempo, o aproveitamento deles é bastante semelhante. E, quando há uma dificuldade, ela pode ser superada. Temos muitos alunos que tiveram nota baixa no ingresso, mas conseguiram se superar. Muitos hoje são até professores universitários.”

A reportagem solicitou entrevista com o reitor Marco Antonio Zago durante uma semana, mas não obteve retorno.

Resistência

Apesar dos avanços, estudantes relatam resistência de colegas. Brito lembra de um episódio logo na primeira festa da faculdade, quando um rapaz se recusou a dividir um copo de bebida. “Ele disse que, além de eu tirar vaga dos outros, queria tirar o copo dele. Para quem é negro, ouvir isso é extremamente humilhante.” Cenas semelhantes acontecem dentro da sala, diz Lucas Mateus Lima, de 22 anos, no 1.º ano de História. Ele afirma que ouviu de um colega, durante um seminário sobre o livro Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, comentários maldosos sobre cotas. “O sangue subiu e eu saí da sala batendo a porta.”

A sensação, para muitos, é de estar em um lugar que não é seu. “Foi um choque total entrar aqui”, diz a estudante Fernanda da Silva Sampaio, de 19 anos, que cursa o 1.º ano de Ciências Sociais. Moradora de São Mateus, na zona leste, ela estudou na rede pública e foi a primeira da família a entrar em uma universidade pública. Assim que chegou à Cidade Universitária, tudo o que conseguia fazer era olhar e se espantar. “Tive uma sensação de imensidão. Nós, pobres, somos acostumados com pouco. Mas agora eu vejo que esse espaço também é meu.”

Para Ariane de Jesus Santos, de 23 anos, do 4.º ano de Engenharia Elétrica, o estranhamento estava por toda parte. “Os alunos chegavam de carro, com roupas diferentes, comiam em outros lugares. Até o jeito era diferente”, lembra a estudante, filha de uma costureira que sempre estudou na rede pública.

O estudante Ivo Lopes Yonamine, de 38 anos, que hoje cursa Letras e estudou Direito em 1998, relata as diferenças. “Sentia antes uma homogeneidade das elites, um grande padrão de alunos vindos de colégios caros.” Na primeira graduação, havia apenas uma aluna negra, “mas adotada por uma família branca de dois médicos de classe média alta”, e outra de escola pública, “mas diferenciada por vir de uma escola modelo”. “Hoje o movimento negro está muito mais forte, tanto em Letras quanto no Direito. Há vivências distintas, houve uma fissura.”

Mas para a estudante do 5.º ano de Medicina Luiza Ribeiro, de 31 anos, que está na segunda graduação – estudou Relações Internacionais em 2004 -, ainda falta muito para a universidade se tornar mais diversa. “Penso nos poucos alunos e nos pouquíssimos professores negros. É preciso melhorar.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.