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Turbante na vida, no nome e no documento

A estilista Rogéria Ferreira, de 35 anos, apresenta a identidade como quem mostra um troféu. Na foto, usa vistoso turbante amarelo, estampado com flores vermelhas. Mas, antes de ter direito a aparecer no documento com o adereço, foi humilhada. “Você está com câncer? É candomblecista?” gritava um atendente do Departamento Estadual de Trânsito (Detran-RJ), onde fora tentar obter o documento. “Se for câncer, tem de trazer laudo médico.”

Rogéria procurou a Polícia, a Defensoria Pública e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Depois da intermediação do Núcleo de Igualdade Racial da OAB, finalmente foi autorizada a tirar a foto. Um ano depois do movimento, um parecer da Procuradoria-Geral do Estado garantiu o direito de que as pessoas exibam, em seus documentos de identidade, foto usando turbantes, chapéus, véus ou qualquer outra cobertura de cabeça, feita por motivo religioso, desde que não esconda o rosto.

“Aqui no Rio, o preconceito não é só de cor. O preto, o pobre e o gordo sofrem preconceito. Quando eu vim para o Rio, isso era novo para mim. Mas nunca me atrapalhou em nada. O caso do Detran me feriu porque mexeu com minha ancestralidade. Hoje eu estou feliz. As pessoas não vão passar o que eu passei. Só peço aos orixás que as pessoas não brinquem com isso. Não vão ao Detran com turbante para falar ‘se ela pode, eu também posso’. Que as pessoas tenham respeito, empatia. Não debochem.”

Rogéria é mineira de Pirapitinga, na Zona da Mata, a 379 quilômetros de Belo Horizonte. Foi criada pela mãe e pelos avós, agricultores. Veio da avó, descendente de angolanos, o costume do turbante.

“Minha avó nunca alisou o cabelo. Cuidava, tinha todo um ritual, e depois colocava o turbante. Um dia eu perguntei: ‘Por que a senhora tem um trabalho danado para cuidar do cabelo e amarra um pano?’ Ela falou: ‘Filha, esse pano faz parte de mim. Estar sem lenço é como estar sem roupa. O turbante faz parte da nossa linhagem’. Essa história não pode ser perdida. Se você não entende, não faz mal. Respeite”, afirma.

Rogéria mudou-se para o Rio aos 18 anos, a fim de estudar. Teve de trancar a faculdade de Ciências Sociais quando a situação financeira apertou. Pouco depois a avó morreu e, como forma de homenageá-la, passou a usar o turbante diariamente. Por duas vezes, perdeu a identidade em assaltos. A primeira vez em que procurou o Detran para tirar a segunda via, a atendente elogiou seu turbante. Pediu para aprender a fazer a amarração. E Rogéria ensinou. “Não tive problema nenhum na hora da foto.”

Foi assaltada de novo e precisava de outro documento. Procurou o Detran em março do ano passado. “Com esse pano na cabeça não pode tirar”, começou a atendente. “Ela olhou a minha foto no sistema e viu que eu já tinha tirado foto com turbante da primeira vez, mas mesmo assim se recusou a fazer de novo”, conta Rogéria. O supervisor foi chamado. A discussão subiu de tom. “Se a senhora quiser, entra ali no banheiro e dá o seu jeito”, ouviu. “Precisava muito do documento. Fui ao banheiro, molhei a mão, tentei arrumar o cabelo. Saí dali com o protocolo e fui procurar meus direitos.”

Depois da intervenção da OAB, foi chamada para voltar ao Detran e fazer a foto. Escolheu um turbante amarelo, com flores. “Eu estava muito feliz, mesmo. É uma grande vitória. É mais um passo para um povo tão sofrido e discriminado. Não só o negro. A mulher quando está cobrindo a cabeça já é discriminada. Dizem: ‘lá vai a macumbeira; só pode ser careca’. E te dói. E doeu mais pelo jeito como eu fui tratada, aos berros.”

Hoje tem uma grife, a Matamba Ateliê, em que faz roupas afro e turbantes. E os vende para brancas também. “Não vejo como apropriação cultural, mas como uma vontade da mulher de ficar bonita. Mas uma preta que usa turbante é uma questão de resistência cultural, sem dúvida. Respeito a luta das irmãs militantes”, diz ela, que adotou como nome Rogéria Fênix Turbante.

Depois do episódio, o Detran fez consulta à Procuradoria-Geral do Estado (PGE). Norma interna do órgão prevê que apenas religiosos que pertençam a alguma ordem ou igreja, com “comprovação eclesiástica”, teriam direito a usar véu, turbante, chapéu. A PGE considerou a norma inconstitucional, por configurar violação do princípio da isonomia. E estendeu o direito a qualquer pessoa, independentemente de comprovação. “Meu RG é uma conquista minha. Minha identidade é o meu turbante. Depois que saiu o parecer, é uma conquista de todos”, afirma Rogéria.

Passaporte. A Polícia Federal informou que para emissão de passaporte cabe ao agente a avaliação sobre o documento de identidade apresentado. Se a foto for considerada antiga, ou desgastada, ou se ainda o agente avaliar que não é possível identificar a fisionomia da pessoa, o documento pode ser recusado. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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