Sem papas na língua

Rio – Chamar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva de caótico – uma irônica substituição para a palavra ?católico? numa resposta a jornalistas que acompanhavam seu desembarque em Roma, no último dia 5 – não foi uma gafe isolada na biografia de dom Eusébio Oscar Scheid. Foi a mais recente, e muito provavelmente a mais grave, mas o cardeal-arcebispo do Rio de Janeiro já havia cometido outras no relativamente curto período à frente de uma das duas mais importantes arquidioceses do País. Ao participar de um simpósio no Sumaré, dom Eusébio não mediu sua reação a um atraso da então governadora Benedita da Silva: ?Ela deve estar arrumando o cabelo?, brincou.

O comentário sobre Benedita não chegou a ser uma bomba – diferentemente das críticas a Lula. Tanto mais grave que não há registro, pelo menos na história recente do País, de um bispo com tal poder eclesiástico ter desafiado tão abertamente, e de modo tão contundente, um presidente da República. Nem mesmo na ditadura militar -durante a qual não foram raros os choques de parte da Igreja com os generais-presidentes devido a flagrantes desrespeitos aos direitos humanos – se registrou tal contundência de um prelado do alto clero brasileiro ao manifestar sua discordância com atitudes do chefe de Estado.

As duras e pouco diplomáticas palavras de dom Eusébio acenderam o pavio, mas a crise não explodiu graças ao arcebispo de São Paulo, dom Cláudio Hummes, que tomou para si o papel de bombeiro. Com o prestígio de quem chegou a Roma para os funerais de João Paulo II apontado por especialistas em Vaticano como um dos favoritos para assumir o Trono de Pedro, dom Claudio procurou jogar água na fervura:

?Lula é um cristão ao seu modo. É um católico ao seu modo. Ele já comungou comigo. Para mim, é católico como todos os outros católicos do Brasil?, afirmou.

Dom Eusébio entendeu a sutil reprimenda e emitiu uma nota, tentando explicar suas palavras: ?(…) nas matérias de fé, de moral e de ética da nossa Igreja ele me parecia mais confuso, ambíguo (caótico) do que lídimo e claro, isto é, não suficientemente católico?, justificou o arcebispo do Rio.

Há quem veja na confusão de dom Eusébio com as palavras não uma opção preferencial pela polêmica, e sim a manifestação de um espírito até certo ponto provinciano. Natural de Joaçaba (SC), ele se formou em teologia pela Universidade Gregoriana, em Roma, e foi ordenado padre em 1960. Dava aulas em Taubaté (SP), quando, designado bispo em 1981, foi nomeado pelo papa João Paulo II para a prelazia de São José dos Campos, no interior de São Paulo.

Atuação na Arquidiocese do Rio deixa a desejar

Rio – Em 1991, dom Eusébio Scheid foi para a Arquidiocese de Florianópolis, onde ficou até vir para o Rio substituir dom Eugênio Sales. Esse suposto espírito provinciano pode não ter ficado tão em evidência em sua passagem por Santa Catarina. Mas talvez dom Eusébio tenha demorado a entender a liturgia da Arquidiocese do Rio, que tem exigências muito mais complexas, com as idiossincrasias de uma região onde convivem as mais díspares realidades políticas, econômicas e sociais.

Dom Eusébio por dom Eusébio: ele não se considera conservador e tampouco progressista – apenas para seguir as distinções mais em voga entre as posições do alto clero. ?Como é a imprensa que divide a Igreja entre conservadores e progressistas, basta criar um patamar intermediário, ou seja, um meio-termo – explica, ao se definir como moderado.

Mas suas posições, notadamente a partir do momento em que assumiu a Arquidiocese do Rio, aproximam-no nitidamente da parte da Igreja que comunga com os princípios mais tradicionais do catolicismo. Teologicamente, seu perfil não o distingue muito das posições de seu antecessor no cargo, dom Eugênio. Mas, se comungam no perfil teológico, os dois arcebispos têm uma grande diferença de temperamento e de métodos que os distancia.

A nomeação de dom Eusébio Scheid para a Arquidiocese do Rio foi uma surpresa – principalmente para dom Eugenio, que, segundo se afirmou na época, esperava fazer seu sucessor. Amigo de João Paulo II e respeitado em Roma a ponto de, nos funerais do papa, ter sido um dos três cardeais em todo o mundo presentes na cerimônia privada em que o corpo do pontífice foi posto no caixão, antes do funeral, dom Eugenio tinha todos os motivos para crer que a primazia de escolher quem lhe sucederia seria acolhida no Vaticano.

Pode-se dizer que medidas do novo arcebispo depois de assumir a arquidiocese justificariam supostas resistências de dom Eugênio ao nome do seu sucessor: Dom Eusébio não só afastou muitas pessoas ligadas a dom Eugênio como substituiu algumas delas por nomes que não eram vistos com bons olhos por seu antecessor. Particularmente esse movimento de pessoal teria magoado o arcebispo do Rio, que num gesto emblemático deixou o protocolo de lado e não saiu da casa do Sumaré. A relação entre os dois hoje pode ser definida como fria – e há quem veja nisso um progresso, pois já foram tensas.

O episódio das críticas a Lula ainda não esfriou totalmente, embora dom Cláudio tenha entrado no circuito para tentar esvaziar seu conteúdo potencialmente explosivo.

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