O salário de ajudante de cozinha que Cristóbal Guerra recebia no fim do mês mal dava para garantir dois dias de comida para ele e os quatro filhos. Castigado pela hiperinflação e pelos preços exorbitantes que assolam seu país, o venezuelano de 38 anos juntou o pouco dinheiro que tinha e comprou, na última semana, uma passagem de ônibus para Pacaraima, município de Roraima que faz fronteira com a Venezuela. Sua intenção era chegar à capital do Estado, Boa Vista, a 215 quilômetros da fronteira, onde acreditava que teria mais chances de conseguir um emprego.
Ao desembarcar no território brasileiro, depois de quase 24 horas de viagem, Guerra trocou os bolívares (moeda venezuelana) que ainda lhe restavam por reais para comprar o bilhete para Boa Vista. Descobriu que todo o patrimônio que tinha se transformara em R$ 24, insuficiente para pagar os R$ 30 da passagem.
Pegou, então, sua mala e decidiu fazer os 215 quilômetros a pé. “Não podia ficar parado esperando uma solução. Preciso logo de um emprego e a única saída era caminhar”, conta. A reportagem do jornal O Estado de S. Paulo o encontrou quando já havia percorrido 60 quilômetros na BR-174, que liga as duas cidades brasileiras. Ele já estava na estrada há um dia e meio. “Com sorte, consigo chegar à Boa Vista com mais dois dias de caminhada”, diz.
Assim como Cristóbal, dezenas de venezuelanos faziam o percurso a pé na última quinta-feira, quando a reportagem esteve no local. Debaixo de uma temperatura de 34°C nos momentos mais quentes do dia, eles caminham somente com uma pequena mala ou mochila, sem comida na bagagem nem protetor solar na pele. Para agilizar o trajeto, alguns tentam uma carona, mas poucos eram atendidos. A viagem, que de carro leva três horas, costuma durar de quatro a cinco dias a pé.
No período da noite, os estrangeiros dormem em comunidades indígenas nas margens da estrada ou estendem um lençol no acostamento da rodovia. Em alguns trechos mais estreitos da BR-174, porém, nem acostamento existe e os imigrantes pernoitam no meio da mata.
Era em um desses cenários que o mecânico Francisco da Encarnación, de 31 anos, descansava com os dois irmãos, a mulher e a filha de 1 ano. Os cinco saíram da cidade de Barcelona, norte da Venezuela, para buscar uma chance de trabalho no Brasil, mas, ao chegarem aqui, também não conseguiram arcar com os custos da passagem de Pacaraima a Boa Vista.
“Sabíamos que R$ 1 valia 34 mil bolívares, mas, quando chegamos na fronteira, estavam cobrando 70 mil bolívares por R$ 1, então ficamos com pouco dinheiro”, conta. Na mala, a família havia trazido 6 milhões de bolívares, o que, no câmbio de moedas, transformou-se em R$ 85. Após comprarem comida só restaram R$ 20, insuficientes para a passagem. “Esperamos conseguir pelo menos uma carona para minha mulher e minha filha. Não é fácil fazer esse trajeto, imagina com uma criança no colo”, diz ele.
Fluxo
A cada dia, mais venezuelanos entram no País por Pacaraima. Às 7 horas de todas as manhãs, o posto da Polícia Federal no município já acumula mais de cem pessoas na fila. Segundo agentes da PF, mais de 700 imigrantes estão cruzando a fronteira diariamente, a maioria com destino a Boa Vista. No domingo, 22, o Estado mostrou que a capital já reúne mais de 40 mil refugiados. Com os centros de acolhida superlotados, a maioria vive em praças públicas sem acesso a água nem banheiros.
A maioria dos venezuelanos que atravessa a fronteira, no entanto, tem pouca ideia do caos que está na capital de Roraima. Para eles, que nos últimos meses viram parentes morrerem de fome, chegar a um país onde é possível comer já é uma grande vitória. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.