Entidades religiosas discordantes travaram um embate de argumentos contrários e favoráveis ao aborto nesta segunda-feira, 6, na manhã do segundo dia de audiência pública sobre a descriminalização da prática no Supremo Tribunal Federal (STF). Igrejas e juristas cristãos criticaram a postura do Supremo em deliberar sobre o assunto, sob a alegação de que este deve ser um tema discutido pelo Legislativo.
Desde sexta-feira, o tribunal ouve representantes da sociedade para embasar o julgamento de ação movida pelo PSOL que pede a liberação do procedimento até a 12ª semana de gestação. O argumento dos autores é que a proibição do aborto fere preceitos fundamentais da Constituição, como o direito da mulher à vida e à dignidade. Hoje, a prática só é permitida em três casos no Brasil: gravidez resultante de estupro, risco de vida à mãe e feto anencéfalo.
Embora as exposições de indivíduos e entidades de cunho religioso tenham sido agendadas todas para o mesmo período por terem posições semelhantes, não houve consenso. Das 11 apresentações, sete foram contrárias ao aborto; duas favoráveis e outras duas sem posição clara definida.
Entre os contrários à descriminalização estavam líderes de igrejas católicas e evangélicas e juristas de associações cristãs. Eles defenderam o princípio da inviolabilidade da vida desde a concepção e argumentaram que o Judiciário não tem competência para mudar o entendimento do Código Penal sobre a proibição do aborto.
“O direito à vida não pode ser mitigado por qualquer outro direito. Essa ação, ao legalizar o assassinato de ser indefeso no ventre da mãe, não merece prosperar”, declarou Douglas Roberto de Almeida Baptista, representante da Convenção Geral das Assembleias de Deus.
Ele defendeu ainda que quem tem a prerrogativa de alterar qualquer legislação vigente é o Senado e a Câmara dos Deputados, não cabendo ao Supremo, segundo o religioso, alterar a norma sobre o assunto. “Essa ação me parece um atalho tomado por um partido político para impor goela abaixo uma legislação genocida”, disse.
Bispo de Rio Grande (RS), dom Ricardo Hoepers defendeu, em nome da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que o poder público busque alternativas de apoio e acolhimento às mulheres em vez de legalizar o aborto. Ele convidou a ministra Rosa Weber, relatora do processo, a visitar casas de acolhida criadas pela Igreja Católica para gestantes que desistiram de abortar.
Representante da União dos Juristas Católicos de São Paulo, a advogada Angela Vidal Gandra Martins Silva afirmou que o Judiciário só deve alterar normas em caso de omissão do Legislativo, o que, segundo ela, não acontece no tema analisado. “Não há omissão pois há vários projetos em tramitação. Aprovar esse pedido seria um aborto jurídico”, argumentou.
Entre os expositores favoráveis à descriminalização do aborto estavam a diretora da organização Católicas pelo Direito de Decidir, Maria José Rosado, e a pastora luterana Lusmarina Campos Garcia, do Instituto de Estudos da Religião. Ambas defenderam a autonomia da mulher e a separação entre Estado e Igreja.
“A laicidade é fundamental para a igualdade. O Estado não pode confundir leis de crime com o que é considerado pecado. Mesmo assim, a Bíblia não condena o aborto. O argumento mais importante das religiões contra o aborto é o mandamento Não Matarás, mas ele não era de aplicação universal porque a Bíblia autorizava matar estrangeiros, mulheres adúlteras, inimigos. A vinculação do aborto com esse mandamento é uma manipulação do texto bíblico”, disse Lusmarina.
Maria José ressaltou que muitas católicas já praticam o aborto e que as mais pobres são as que mais sofrem as consequências do procedimento clandestino. “Não podemos continuar fechando os olhos para essa realidade. A Constituição deve ser cumprida e a religião deve acolher e não julgar”, defendeu.
Do lado de fora
As hostilidades entre grupos contrários e favoráveis à descriminalização do aborto começaram do lado de fora do Supremo, antes mesmo do início da audiência pública. Na fila formada para entrada no evento, parte dos presentes segurava terços e rezava “pelo direito à vida” enquanto grupos feministas carregavam cartazes lembrando a morte de mulheres em clínicas clandestinas e o abandono masculino.
Ainda como parte do protesto, algumas integrantes dos grupos feministas vestiram-se como personagens da série americana The Handmaid’s Tale, na qual mulheres são feitas escravas sexuais com o objetivo de procriar.
Outro momento de hostilidade ocorreu durante a chegada da advogada e professora da Faculdade de Direito da USP Janaína Paschoal, que ficou conhecida nacionalmente por ser uma das autoras do pedido de impeachment contra a ex-presidente Dilma Rousseff. Inscrita como uma das expositoras da audiência pública, ela foi recebida com vaias e gritos de “golpista”. Ela fará sua apresentação às 16 horas desta segunda.
Além de Janaína, outros 12 expositores falarão no período da tarde, entre ONGs e entidades jurídicas. Na sexta-feira, 3, primeiro dia da audiência pública, foram 26 entidades ouvidas, 20 favoráveis à descriminalização e seis, contra. Com a conclusão da atividade, a ministra Rosa Weber, relatora da ação, irá elaborar seu voto para, então, agendar a data do julgamento.