Entre o concreto, nos caules de árvores e em partes que são descartadas nas feiras, estão plantas que podem ser incorporadas à alimentação, trazendo beleza, nutrientes e novos sabores aos pratos. Sucesso entre chefs de cozinha renomados e que defendem ingredientes brasileiros em suas criações, as panc – Plantas Alimentícias Não Convencionais – também estão ganhando espaço entre pessoas que exploram a cidade para colher mudas e encontrar sementes de espécies que não são achadas nos mercados.
A artesã e tradutora Leticia Cinto, de 53 anos, tem lembranças da infância, de quando a mãe identificava plantas comestíveis no meio do cafezal e dos pratos diferentes que faziam parte do seu dia a dia. “Nós comíamos e gostávamos de serralha, almeirão, taioba, cambuquira, flor de abóbora. Nosso prato nunca era arroz, feijão, bife e salada de alface”, lembra.
Leticia nunca fez um curso específico sobre o tema, mas acompanhou palestras e passou a buscar essas plantas na capital. “Eu sempre olhei muito ao redor quando caminho na cidade. Ando muito a pé e vou vendo as árvores frutíferas, as folhagens, o que me chama a atenção no percurso. Quando comecei a entender que algumas daquelas folhagens poderiam ser plantas alimentícias, passei a olhar com mais interesse e curiosidade”, conta.
Nos fins de semana, Leticia e o marido fazem longas caminhadas pela Vila Madalena, bairro da zona oeste de São Paulo onde moram, e nesses momentos ela gosta de coletar principalmente frutas. “Antes eu ia olhando e pensando ‘Puxa, isso daria uma boa geleia’, mas não colhia nada, no máximo provava uma frutinha na hora. Depois, passei a sair para as caminhadas equipada com uma mochila pequena, sacola, tesourinha. Os passeios passaram a ser expedições de colheita urbana.”
Para evitar problemas com plantas sujas ou impróprias para consumo, ela usa livros e sites especializados no tema como referência. E, claro, sempre higieniza todos alimentos. “Também deixo os matinhos crescerem nos vasos da varanda. Acho que as sementes vêm na própria terra ou pelo vento e, às vezes, dou uma ajudinha à natureza, coletando as das plantas que reconheço em lugares que não acho seguros e plantando-as nos vasos”, afirma.
Até 2014, a artista plástica Regina Yassoe Fukuhara, de 51 anos, achava que comer plantas que não conhecia era algo perigoso, principalmente pelo risco de envenenamento. No ano seguinte, foi apresentada às panc em um curso e não parou mais de pesquisar e de buscar orientações sobre o tema. Hoje, também compartilha o que aprendeu sobre o assunto em oficinas.
Regina se mudou recentemente para a Parada Inglesa, na zona norte da capital, e já está explorando o bairro para encontrar suas panc. “Eu me mudei faz pouco mais de três meses para uma casa para poder ter uma hortinha com panc e medicinais, mas sempre tive plantas em vasos e floreiras no apartamento. Tenho feito reconhecimento nas ruas próximas de minha casa e até coletado mudas, conversado com moradores que têm panc e usado em minhas oficinas.”
A artista plástica capricha no preparo dos pratos com as plantas, que ficam tão coloridos e harmoniosos quanto as telas que pinta. Para ela, os novos preparos estão interferindo na sua forma de sentir o sabor dos alimentos. “Desde que comecei a me alimentar com mais saladas de panc, acho que mudou muito meu paladar. Fui diminuindo a quantidade de açúcar branco e, agora, sinto que os doces costumam ser exageradamente doces”, diz Regina.
Professor do Departamento de Ciências Biológicas da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo (USP), Flávio Bertin Gandara Mendes diz que essas plantas estão mais adaptadas ao clima local, solo e condições ambientais, têm menos problemas com pragas e doenças do que as espécies convencionais, o que reduz o uso de agrotóxicos, e são muito produtivas. “Essa busca é muito interessante porque essas plantas têm propriedades culinárias e um sabor que tem de ser descoberto. Comemos os mesmos alimentos no mundo inteiro e há peculiaridades que estão se perdendo. É um resgate de informações que já foram usadas no passado.”
A Esalq prepara um guia com identificação de cem espécies de plantas não só alimentícias, mas também ornamentais e medicinais, que deve ser lançado em 2019, com uma versão online gratuita.
Palestras
Quem quiser conhecer mais sobre as panc pode aproveitar a série de palestras sobre o assunto que o Sesc Pompeia, na zona oeste, realiza até novembro. “Apresentamos algumas panc, ensinamos formas de preparo, introduzimos plantas no cardápio do público e, assim, contribuímos para a adesão a uma alimentação mais sustentável e equilibrada”, explica Mônica Carnieto, gerente da unidade. Para isso, conta, foram convidados chefs de cozinha, nutricionistas, biólogos, agrônomos, produtores e pesquisadores da área. Cerca de 1,7 mil pessoas já acompanharam o projeto, que é gratuito.
A curadoria é feita pela nutricionista Neide Rigo, colunista do Paladar que desenvolve o projeto Panc na City, iniciativa em que os participantes percorrem o bairro City Lapa em busca dessas plantas. “As pessoas que vêm cozinham, querem aumentar o repertório e têm interesse pela cidade. A gente anda para identificar, não significa que vai colher e comer tudo.”
Biólogo do Amazonas criou termo
Foi ao longo do doutorado do biólogo Valdely Kinupp, professor e pesquisador do Instituto Federal do Amazonas (Ifam), que o acrônimo panc tomou forma. “Na época, a gente falava em plantas alimentícias alternativas. Mas a ideia (das panc) não é ser uma alternativa, mas sim agregar, somar e diversificar.”
A tese foi defendida em 2007 e, no ano seguinte, o termo foi cunhado. “Esse acrônimo inclui plantas nativas, silvestres, atípicas e as cultivadas que não têm usos convencionais. A bananeira, que se come o coração, o mamão verde, o uso da casca do limão e de flores. Panc é panc porque não está na panela. Quando entra na panela, vira comida”, diz Kinupp, autor do livro Plantas Alimentícias Não Convencionais (Panc) no Brasil (Editora Plantarum). As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.