Os invertebrados mais inteligentes do mundo, cujo repertório de comportamentos complexos inclui a trapaça, o uso de ferramentas e a capacidade de brincar, já podem incluir uma nova façanha em seu currículo: sonhar.

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“Sim, polvos parecem sonhar. E dá para ver na pele deles”, diz o neurocientista Sidarta Ribeiro, pesquisador do Instituto do Cérebro da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) e um dos autores de um novo estudo sobre o tema, que acaba de ser publicado no periódico especializado iScience.

Com a ajuda de quatro “voluntários” da espécie Octopus insularis, comum em locais da costa brasileira como a ilha de Fernando de Noronha, Ribeiro e seus colegas obtiveram dados detalhados sobre os diferentes ciclos de descanso e vigília típicos desses moluscos. Assim, conseguiram demonstrar a presença de um estado de “sono ativo”, no qual os bichos ficam completamente desconectados do que acontece ao seu redor, mas apresentam movimentos dos olhos, espasmos musculares e seguidas mudanças bruscas na coloração da pele.

São alterações fisiológicas muito similares às que acontecem durante os sonhos de vertebrados como os seres humanos (com exceção das alterações de cor, é claro). Trata-se de um forte indicativo de que algo comparável ao sonhar que experimentamos todas as noites estaria acontecendo no sistema nervoso dos polvos.

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Chegar a essa conclusão, no entanto, não foi brincadeira. O neurocientista da UFRN, um dos principais especialistas do mundo na neurobiologia dos sonhos, diz que tinha o desejo de estudar polvos desde que terminou seu doutorado, no ano 2000. “Começamos do zero, tomamos várias rasteiras, mas finalmente aprendemos como criá-los e estudá-los.”

Para isso, afirma, foi fundamental a colaboração de longo prazo com Tatiana Leite, especialista em polvos então na UFRN e hoje na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina). “Um dia a Tati me ligou para dizer que havia achado a pessoa certa para tocar o projeto, e era mesmo. A Sylvia Medeiros é uma bióloga com experiência de pesquisa sobre polvos no ambiente natural, mergulhadora muito apta na captura e manejo dos animais”, conta ele. Ambas assinam o trabalho.

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Medindo cerca de 15 cm (sem contar os tentáculos), o O. vulgaris é um pequeno predador generalista, com predileção por crustáceos e outros invertebrados de pequeno porte. Como a equipe da UFRN mostra no estudo, seu repertório comportamental é variado e ainda não foi totalmente compreendido.

O bicho faz coisas como ficar quietinho, com apenas um olho se movimentando, ou o chamado “meio a meio”, no qual, enquanto também está parado, o polvo divide o corpo exatamente no meio, com uma faixa clara e outra escura (coisa que ele consegue fazer usando células especializadas da pele e da musculatura).

No entanto, a análise detalhada do quarteto de polvos em laboratório mostrou a presença de dois estados realmente similares ao sono. Num deles, o chamado “sono tranquilo”, o animal empalidece, suas pupilas se estreitam até parecerem um mero risquinho e ele quase não se mexe. Há também o sono ativo, já descrito acima. O mais interessante é que, em testes feitos para tentar acordar os polvos dorminhocos com estímulos visuais e fazendo os aquários vibrarem, o sono ativo parece ser mais “profundo” que o sono tranquilo –estímulos mais fortes são necessários para despertar os bichos no primeiro caso.

“É muito impressionante. Durante o sono ativo, as pupilas não se abrem completamente, mas se deformam pelos movimentos e às vezes se abrem um pouco, mas mesmo assim os animais não acordam. É importante lembrar que os polvos também têm fotorrecepção [detecção de luz] na pele, então a falta de responsividade durante o sono ativo acontece a despeito de bastante estimulação chegar ao animal”, explica Ribeiro.

Os pesquisadores também mostraram a presença de ciclos relativamente bem definidos de duração e alternância entre as formas de sono. Os episódios de sono tranquilo costumam ser mais longos do que os de sono ativo (média de 7 minutos versus 40 segundos, respectivamente). Além disso, fases mais compridas de sono tranquilo tinham uma tendência a serem seguidas pelas de sono ativo.

Mas o que estaria acontecendo no sistema nervoso dos moluscos durante as fases de sono movimentado, afinal de contas? A analogia com vertebrados –já sabemos que mamíferos, aves e até répteis sonham- sugere que a alternância entre estados de sono é muito importante para o aprendizado e para a resolução de problemas. Em mamíferos, tais processos ajudam a regular a plasticidade das sinapses (ligações entre neurônios), ou seja, a flexibilidade com que as células do cérebro “conversam” entre si.

“É tentador especular que mecanismos semelhantes estejam em ação nos polvos”, ainda mais quando se considera a flexibilidade de aprendizado típica dos animais, diz Ribeiro.

O problema é medir isso diretamente. “Quando comecei a pesquisa, achei que ia conseguir registrar dados sobre os neurônios dos animais com métodos parecidos com os que uso nos ratos, mas foi um ledo engano. Até agora falhamos miseravelmente na hora de tentar estabilizar eletrodos nos bichos, é tudo mole e escorregadio, e eles não aceitam nenhuma tentativa de imobilização. Simplesmente não há ossos onde se possa firmar um parafuso ou resina. Problemaço!”, lamenta o neurocientista.

Enquanto a sacada que permitirá esse tipo de medição não vem, o grupo deve continuar usando outros métodos para estudar aspectos comportamentais e da biologia molecular da espécie.