Por Roldão Arruda
Nuvens pesadas cobrem o céu de Roraima. Está começando o inverno local – estação de chuvas fortes que se estende por seis meses, até o verão, quando o sol brilha sozinho por outros seis meses. Neste ano, na terra indígena Raposa Serra do Sol, o inverno chega acompanhado de medos e incertezas. Segunda-feira (14) a Polícia Federal começa a despejar seus homens naquele território, dividido em dois grandes ecossistemas, o lavrado, com suas planuras e a vegetação rasteira, e as áreas de montanhas, nas linhas de fronteira com a Guiana e a Venezuela.
A missão declarada dos federais será garantir a segurança e a tranqüilidade dos moradores nos próximos dois meses. Este é o prazo previsto pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para chegar a uma definição sobre a Serra do Sol: vai decidir se mantém o decreto assinado em 2005 pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que homologou a criação da reserva e determinou a retirada dos não-indígenas da área; ou se atende à reivindicação de grupos que discordam da medida e defendem a permanência de enclaves não-indígenas no meio da terra dos macuxis, uapixanas, ingaricós, taurepangs – povos que ali vivem desde antes da chegada dos portugueses ao Brasil.
Em outras palavras, é a disputa entre os que querem a reserva como área contínua, de uma ponta à outra; e os que exigem seu fracionamento em ilhas.
A PF pretende evitar confrontos entre esses dois grupos. Mas a nova missão corre o risco de expor ainda mais as dificuldades da Upatakon 3 – a operação policial desencadeada com o propósito de cumprir as determinações legais de retirada de todos os não-indígenas da área.
A PF está em Boa Vista desde o dia 27 de março. Passados quase 20 dias, a operação não avançou. Nos bastidores da Upatakon (que significa "nossa terra", em macuxi), fala-se que os problemas da operação são devidos à ausência do apoio logístico das Forças Armadas.
Para se ter uma idéia do que isso significa, basta dizer que até agora a PF está transportando homens para Roraima. Se tivesse tido o apoio da Aeronáutica, todo o contingente poderia ter sido desembarcado num só dia.
Os agentes devem agora deixar a cidade e ir para o sertão, o território indígena. É impossível prever qualquer coisa sobre a convivência forçada entre eles, os índios e os soldados do Exército, espalhados por ali.
O grupo de oito grandes produtores que comanda a ação de resistência ao decreto presidencial também vive um momento de incertezas. Estão prestes a iniciar mais uma colheita e temem que a PF crie obstáculos para o seu trabalho. Um dos líderes do grupo, Paulo César Quartiero disse que tem pela frente uma colheita que vale R$ 2,8 milhões.
Mas é entre os índios que são mais visíveis as marcas do medo e da insegurança. Estão divididos entre os que apóiam a criação da reserva em área contínua (a maioria deles) e os que discordam. A discordância é tão forte que as aldeias chegam a ser divididas: de um lado moram os favoráveis à homologação e do outro, os contrários. Os grupos evangélicos, em sua maioria defensores da proposta de ilhas, são mais radicais: afastam-se para criar comunidades.
Nos últimos dias, os mais sacrificados foram os integrantes da Comunidade do Barro, no Distrito do Surumu – ponto emblemático nessa briga, por estar na entrada da reserva e próximo aos arrozais. Quando os arrozeiros queimaram pontes e ergueram barreiras para impedir a passagem da PF, acabaram isolando a comunidade. Durante dez dias não se podia entrar ou sair.
Na tarde de quinta-feira, a reportagem conversou com líderes ligados ao Conselho Indigenista de Rondônia, entidade que defende a área contínua. Alguns falaram na necessidade de um levante dos índios, para expulsar por conta própria os arrozeiros. Mas não havia convicção na fala, nos corpos e nem nos olhares deles e de outros que foram se juntando ao grupo. É uma gente muito humilde que foi obrigada a conviver há séculos com pecuaristas, garimpeiros, agricultores, militares, numa terra que já foi toda deles, como atestam os nomes dos rios, das árvores, dos vilarejos, quase todos na língua macuxi.