Jorge Kersul Filho era piloto de caça. Entrara na Aeronáutica em 1972 e comandou o esquadrão Pampa, de aviões F-5E, em Canoas, no Rio Grande do Sul. Homem de fala segura, Kersul é desses oficiais de temperamento e presença forte, uma figura inesquecível para os subordinados. A seguir, trechos de sua entrevista ao Jornal o Estado de S. Paulo.

continua após a publicidade

O senhor chegou ao Cenipa em meio ao resgate das vítimas do voo 1907 da Gol, em 2006. O que foi aquele período para o senhor?

continua após a publicidade

Eu nunca fui dessa área de investigação e prevenção de acidentes aeronáuticos. Jamais havia passado pela minha cabeça que eu seria escolhido para chefiá-la. Fui o primeiro brigadeiro a comandar o Cenipa (Centro de Investigação de Acidentes). Antes de assumir, houve a queda do (voo da Gol) 1907. No meu período de chefia pudemos fazer muita coisa e, infelizmente, aconteceram os três piores acidentes: um logo no início (Gol), outro oito meses depois (TAM, voo 3054) e um ano depois (Air France, voo AF447). Além disso, convivemos, com certeza, com mais de cem acidentes por ano. Foi um período em que tivemos muito trabalho.

continua após a publicidade

O senhor estava onde quando aconteceu o acidente da TAM?

Eu me recordo de tudo. Estávamos ainda na investigação do Gol e havíamos feito várias reuniões aqui com os familiares, choramos várias vezes. Naquele dia, quando cheguei em casa, houve uma chamada na TV Globo e fui ver o que era (…) Aquilo foi uma decepção muito grande para todos no Cenipa. Na época, o coronel Afonso havia feito uma avaliação de algumas ocorrências em Congonhas de runway excursion (saída de pista). Ele fez uma análise, chegou para mim e disse: ‘Nós vamos ter um acidente em Congonhas. Eu falei: Nós não vamos ter não. Se nós estamos vendo isso, vamos tomar providências’. Nós convocamos o pessoal de Congonhas, Anac e Infraero e apresentamos as nossas preocupações e estabelecemos procedimentos para tentar evitar um acidente lá, que era causado principalmente por aquaplanagem. Aí tomamos providências (…) A pista entrou em reforma e nós ficamos felizes, pois se ela seria reformada nós teríamos conseguido evitar o acidente. A pista voltou a operar e não deu tempo nem sequer de os relatórios de prevenção ficarem prontos. Começamos a constatar ocorrências. Houve uma saída de pista do Pantanal (um avião ATR) e, no dia seguinte, o 3054 saiu da pista. Com um alerta: a pista nesse caso, até onde conseguimos levantar, não contribuiu efetivamente para o acidente. Aquele avião, em qualquer pista do planeta sairia do mesmo jeito. Até porque dois casos idênticos haviam ocorrido no mundo com A320.

Foi a maior decepção no Cenipa?

Foi uma decepção porque nós achávamos que tínhamos evitado o acidente. Estávamos iludidos de que o nosso trabalho havia surtido efeito.

Em outros aeroportos foram detectados problemas como Congonhas?

A principal função do Cenipa é essa: trabalhar com as informações que você tem e verificar. Por exemplo: o excesso de acidentes na aviação agrícola. Por que há tanto avião parando o motor? Porque a maioria dos pilotos mantinha a bomba de reforço desligada para economizá-la. Aí você solta aviso dizendo: parem de economizar. Isso é a vida do Cenipa. É verificar o excesso de balões, fazer o controle de aves. Por exemplo, chega-se a conclusão que em Fernando de Noronha vai ter um acidente por colisão com pássaro. Aí você tenta atuar em cima dos pássaros… Aí você chega à conclusão que a cidade de Campo Grande tem muito pombo e os pombos vão causar uma colisão de voo. Aí começa um trabalho de limpeza, de controle.

Os acidentes criaram um clima difícil para a Força Aérea. Como o senhor absorveu essas pressões?

Era difícil, por exemplo, evitar que um investigador fosse prestar depoimento em uma CPI. Passamos por muitos problemas, como motim dos controladores. O problema com relação ao Cenipa foi que nós não tivemos a colaboração dos controladores (na apuração do acidente da Gol, um deles até foi condenado pela Justiça). Nenhum controlador quis falar com o Cenipa, o que atrasa a investigação. Sem a ajuda, a investigação se prolongou um pouco mais. (…) Tivemos de partir das imagens e começar a tentar deduzir. Por isso defendemos investigação policial que seja independente e paralela. Por isso defendemos que as informações prestadas aqui não sejam usadas a não ser para a prevenção de acidentes aeronáuticos. O indivíduo só fala conosco porque sabe que isso não será usado contra ele.

Congonhas traz ainda algum tipo de recordação ao senhor?

Não… Mas eu diria uma coisa, que poucas pessoas pensam do acidente. Temos de dar graças a Deus que foi pequeno. Porque se aquele avião tivesse saído um pouco antes do local que saiu, onde nós tínhamos vários aviões estacionados, cheios de gente e cheios de combustível; se aquele avião tivesse saído antes do local que ele saiu, o desastre teria sido muito, mas muito maior. Então, cada vez que eu penso no acidente de Congonhas eu agradeço que, dentro do que ele poderia ter sido, foi pequeno. Se a velocidade dele estivesse maior, ele poderia ter vazado o prédio (da TAM Express) e pego o prédio atrás. Tudo poderia ser pior. E poderia também não ter acontecido se a tripulação arremetesse. Mas isso não resolve nem muda o passado. A gente tem de trabalhar para evitar que aconteça novamente.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.