A Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo identificou excessos em 74% das ocorrências em que policiais mataram civis durante supostos confrontos em 2017, ano em que a letalidade policial foi a maior da série histórica, iniciada em 2001. A constatação foi divulgada nesta segunda-feira, 13, em relatório do órgão, que analisou boletins de ocorrência, laudos técnicos produzidos nos locais desses casos e os procedimentos e métodos padrões para ocorrências de risco. Em um quarto dos registros, sequer foi constatado confronto entre os agentes e os suspeitos.
O órgão independente, que cuida de queixas e do monitoramento de ações policiais, analisou 639 ocorrências, que resultaram em 756 mortes de civis. Não alcançou todos os casos, uma vez que foram 940 em 2017. Dos casos analisados, 48% apresentaram excessos na legítima defesa. Nesses, a Ouvidoria confirmou que houve confronto armado entre policiais e criminosos, mas indícios como disparos pelas costas e na cabeça apontam força excessiva de órgãos de segurança.
Em outros 26%, a instituição identificou excessos em casos sem confronto armado, ou seja, a vítima estava desarmada, portava simulacro ou arma branca, como facas. Nos 26% restantes, não foi caracterizado uso inadequado da força. A Secretaria de Segurança diz ter ações para reduzir casos.
Ainda segundo a Ouvidoria, a alta na letalidade não pode ser atribuída a uma maior violência por parte do crime organizado. Isso porque no ano passado apenas sete casos envolveram ocorrências graves contra quadrilhas fortemente armadas. “Representa 1% do total. Na maioria das vezes, a polícia estava melhor armada do que as vítimas”, disse o ouvidor, Benedito Mariano. Das 1,9 mil armas apreendidas, a mais comum era a pistola .40 (1.057 apreensões), seguida pelo revólver calibre 38 (385 ) e o revólver calibre 32 (89). Foram apreendidos ainda 63 fuzis 5.56 e 27 fuzis Imbel IA2, além de 63 submetralhadoras Famae MT40.
A maioria das mortes (93%) foi cometida por PMs. Na corporação, é o 1.º Batalhão de Choque, a Rota, o responsável pela maior quantidade de óbitos de suspeitos, com 68 no ano passado. Na sequência, com 21 casos, vêm o 41º Batalhão, de Santo André, e o 16.º, do Rio Pequeno, com 18 vítimas.
Recomendações
O relatório traz 14 recomendações à SSP e ao governo do Estado. Entre elas está reativar a Comissão Especial para a Redução da Letalidade – grupo da secretaria com participação da sociedade civil para monitorar as ocorrências -, fortalecer a cultura de policiamento preventivo e comunitário e difundir a filosofia do método Giraldi – método de tiro defensivo para proteger o policial e reduzir a letalidade, parte do treinamento das corporações paulistas desde 1998. Além disso, sugere criar uma disciplina sobre estereótipos de suspeitos e discriminação social e racial nas academias de polícia.
Para a diretora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Samira Bueno, o relatório tem, primeiro, papel importante de dar transparência às ações policiais. “Estudos como esse reforçam a vocação da Ouvidoria no caminho de fazer com que a polícia funcione melhor. Assim, também é necessário que essas informações cheguem ao Ministério Público e sejam cobradas na Justiça.”
Ela diz que, “sob qualquer parâmetro, as mortes mostram um quadro grave e inaceitável”. A pesquisadora afirma ainda que o agente, ao atuar fora da lei, se expõe a riscos da violência e da punição, seja legal, seja de membros do crime organizado motivados por vingança.
Um caso
A tatuagem que o ambulante Lucas Nogueira, de 23 anos, traz no braço com o nome do irmão Luan sempre motiva questionamentos quando ele é parado para revistas policiais em Santo André. “Quando falo que é por causa do meu irmão, que foi morto pela polícia, os policiais sempre me xingam, dizem que ele era noia. Mas não tenho medo. Ainda tenho a esperança de ver quem fez isso com ele ser preso”, disse.
O cabo que matou Luan, de 14 anos, no Parque João Ramalho, estava atrás de uma moto roubada quando, em novembro do ano passado, entrou em uma viela e se deparou com um grupo próximo a um veículo. O PM diz que foi alvo de disparos antes de atirar e matar o adolescente. Testemunhas negam e dizem que o policial, denunciado este ano por homicídio culposo, já entrou atirando no local. Nenhuma arma foi encontrada.
“Há uma cultura histórica em atuar mais para o flagrante delito do que na prevenção. É preciso que se reforcem os modelos comunitários e preventivos para transformar o comportamento da polícia”, acrescenta Benedito, que assumiu como ouvidor em fevereiro. Ele já havia sido o primeiro a ocupar o cargo, entre 1996 e 2000.
Casos caíram no 1º semestre, diz secretaria
A Secretaria da Segurança disse ser “incorreto” fazer estudos analíticos, sem levar em consideração “todos os aspectos de cada caso que é acompanhando, monitorado e investigado para constatar se a ação policial foi realmente legítima”. Destacou ainda seguir as regras para apurar esse tipo de caso, como notificar o Ministério Público no momento em que a morte é informada às polícias.
Os procedimentos, específicos para esses tipos de caso, são previstos pela Resolução 40 da secretaria, de 2015. Ocorrências de letalidade policial são investigadas pelo Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP).
A pasta ainda destacou que, no primeiro semestre deste ano, em comparação com o mesmo período de 2017, as ocorrências envolvendo agentes de folga caíram 33% e com policiais em serviço, 0,62%. Isso resultou em queda total de 9,5%, uma vez que as mortes provocadas por agentes em serviço são em maior número.
“Em 2017, foram presas em flagrante 152.448 pessoas, apreendidos 25 fuzis e 188 explosivos e apetrechos. No mesmo período, 687 morreram ao confrontar a polícia durante o serviço, ou seja, 0,45% do total de prisões”, informou, em nota.
‘Distorção’
Presidente da Associação de Oficiais da PM-SP, o coronel da reserva Elias Miler da Silva afirmou que o foco do debate está “distorcido”. “O Brasil tem 64 mil homicídios por ano e estamos olhando para os 5 mil das polícias. Os policiais estão ficando acuados e os poucos que se dispõem ao enfrentamento estão se retirando e há o risco de a sociedade perder a guerra para o crime.”
Já o major Luiz Fernando Alves, assistente da Secretaria de Segurança na Ouvidoria, disse que a pesquisa é “extremamente válida”, que métodos de tiro defensivo devem ser reforçados na formação, mas que às vezes “o policial tem uma fração de segundo para decidir entre a vida e a morte”.