As técnicas que permitem analisar o genoma de populações pré-históricas já estão revolucionando o conhecimento sobre o passado remoto da humanidade, ao desvendar detalhes sobre as migrações e culturas dos povos em uma época anterior à invenção da escrita. As descobertas nessa área acabam de receber um impulso sem precedentes, com a publicação simultânea de dois estudos que praticamente dobram o número de análises de DNA pré-histórico existentes.
Os dois artigos, publicados nesta quarta-feira, 21, na revista Nature, trazem a análise de 625 genomas humanos da Idade da Pedra e da Idade do Bronze. Entre 2010 e 2014, o número de indivíduos pré-históricos com o DNA analisado passou de um para 10. Nos últimos quatro anos os estudos do gênero não pararam de se multiplicar e, com os dois novos artigos, o número de análises saltou de uma só vez para 1.336.
Os dois novos estudos, com foco na pré-História da Europa, envolveram mais de 100 arqueólogos e geneticistas sob a coordenação de David Reich, da Escola de Medicina de Harvard (Estados Unidos). Segundo Reich, uma das principais conclusões tiradas a partir da nova torrente de dados genéticos é que as migrações eram muito mais comuns do que se pensava.
“Havia uma noção de que as migrações eram um processo muito raro na evolução humana, mas ela estava equivocada. A ortodoxia arqueológica – isto é, a suposição de que as pessoas que vivem atualmente em um local descendem de gente que vivia na mesma área – está errada em praticamente em todos os lugares’, afirmou Reich.
“A nova visão que está emergindo desses estudos é que as populações estão se movendo e se misturando o tempo todo”, disse outro dos autores do estudo, John Novembre, especialista em biologia computacional da Universidade de Chicago (Estados Unidos).
De acordo com Reich, essa nova torrente de informação genética representa o início de uma nova era para os estudos de DNA antigo, que trazem informações surpreendentes sobre uma época que antes só podia ser estudada por meio de ossos, artefatos e vestígios de assentamentos. “Cada vez que olhamos para os dados, eles nos surpreendem novamente”, disse.
Em um dos estudos, os cientistas mapearam a expansão da antiga “cultura do vaso campaniforme”, assim chamada por conta de seus característicos vasos de cerâmica cuja abertura tem a forma de um sino invertido. Essa cultura se espalhou inicialmente entre a Península Ibérica e a Europa Central, há cerca de 4.700 anos.
Com a análise do DNA de centenas de amostras de ossos humanos, os cientistas liderados por Reich demonstraram que, pelo menos no início, a movimentação foi apenas de ideias – e não de pessoas. Isto é, os genes da população ibérica daquela época permaneceram distintos dos genes dos povos da europa central, que no entanto “importaram” as características da cerâmica ibérica. “No início, a expansão da cultura do vaso campaniforme representou mais uma disseminação de ideias do que de pessoas, ao contrário de outras culturas pré-históricas”, disse Reich.
Mas tudo mudou quando a cultura do vaso campaniforme se expandiu para a Grã-Bretanha, há cerca de 4.500 anos, segundo o estudo. Ali, a cerâmica da europa meridional foi levada por imigrantes que, em poucas centenas de anos, substituíram completamente os habitantes originais da ilha – o misterioso povo que deixou as construções conhecidas como Stonehenge.
“Houve uma mudança súbita da população da Grã-Bretanha. Foi uma substituição quase completa”, disse Reich. Segundo o cientista, a transformação genética ocorrida na região introduziu na população local variantes ligadas à pele e olhos mais claros. Os genes que permitem a digestão da lactose se tornaram comuns algum tempo depois.
Guerreiros das estepes
Os novos estudos também mostraram movimentações inesperadas dos povos yamna – guerreiros e pastores nômades que viviam nas estepes ao norte do Mar Negro e do Mar Cáspio. Há cerca de 5.300 anos, os yamna – que já montavam cavalos e inventaram as carroças – começaram a substituir os povos de caçadores-coletores em vários locais da europa.
Os arqueólogos já sabiam que algumas das tecnologias dos yamna acabaram se difundindo por todo o norte da Europa. Mas a análise de DNA antigo trouxe novas revelações: as migrações do povo yamna se estenderam, no oeste, até a costa europeia do Atlântico, no leste, até a Mongólia e, no sul, até a Índia.
Segundo os autores dos estudos, essa vasta migração ajuda a explicar a igualmente vasta expansão das línguas Indo-Europeias, que mais tarde dariam origem a todas as línguas latinas, anglo-saxãs e germânicas.
Geneticamente, os yamna substituíram os caçadores-coletores em toda a Europa – o que é demonstrado pela inequívoca marca do DNA das estepes nas populações europeias -, assim como aconteceu com a migração dos povos da cultura do vaso campaniforme para a Grã-Bretanha.
“Todo esse fenômeno da expansão dos povos das estepes é um incrível exemplo do que o DNA antigo pode mostrar. Ninguém, nem mesmo os arqueólogos em seus sonhos mais incríveis, poderia esperar tamanho conteúdo genético das estepes nas populações do norte da Europa há 5 mil anos”, disse Reich.
Caçadores e fazendeiros
Um dos estudos liderados por Reich e publicados na Nature traz novos dados sobre a história genômica do sudeste europeu, com base nos dados de 255 indivíduos que viveram nessa região entre 14 mil e 2,5 mil anos atrás. A pesquisa revela que grandes migrações também acompanharam a disseminação da agricultura pela Europa.
O estudo revelou, ainda, a primeira evidência de que a mistura genética das populações europeias teve um forte viés de gênero. Os genes de caçadores-coletores remanescentes no norte da Europa após a imigração dos agricultores vêm predominantemente de homens.
Segundo Reich, a agricultura foi introduzida na Europa há cerca de 8,5 mil anos, trazida por migrantes da Ásia Menor. No início, esses imigrantes se estabeleceram no sudeste europeu, antes de se espalharem por todo o continente.
“Evidências arqueológicas mostram que, em suas primeiras migrações para o norte europeu, os fazendeiros paravam de avançar quando chegavam em latitudes que impediam o crescimento satisfatório das plantações. Com isso, formaram-se fronteiras persistentes entre os agricultores e os caçadores-coletores, que conviveram assim por uns dois mil anos”, explicou Reich.
De acordo com o cientista, essa disposição geográfica garantiu a interação entre agricultores e caçadores-coletores por muito tempo. A partir dos dados genéticos, Reich levanta a hipótese de que essa longa interação gerou uma dinâmica social na qual as mulheres agricultoras tendiam a ser integradas nas comunidades de caçadores-coletores.
“Isso ainda é especulação, mas o fato do DNA antigo fornecer pistas sobre os papeis sociais d ehomens e mulheres na pré-história é outro aspecto que torna esses dados tão extraordinários”, afirmou Reich.
Avanço meteórico. Segundo os cientistas, o meteórico avanço das pesquisas sobre as sociedades pré-históricas foi impulsionado por três fatores. Um deles foi a dramática redução de custos e aumento da velocidade das técnicas de sequenciamento de genes.
O segundo fator foi a descoberta – liderada pelo grupo do arqueólogo Ron Pinhasi da University College de Dublin (Irlanda) – de que o osso petroso, localizado no ouvido interno, contém 100 vezes mais DNA que outros tecidos humanos antigos. Isso resultou em um enorme aumento do material genético disponível para análise.
O terceiro fator é um método, implementado pelo próprio Reich, para analisar os códigos genéticos de 1,2 milhão de partes variáveis cuidadosamente escolhidas do DNA – que tem 3 bilhões delas. A técnica dispensou a necessidade de sequenciar completamente os genomas, acelerando a análise e reduzindo os custos ainda mais.
O novo campo de estudos decolou quando um grupo de cientistas liderado por Reich e por Svante Pääbo, do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva, utilizaram o DNA antigo para provar que houve miscigenação entre os humanos e o Homem de Neanderthal. Desde então, houve um crescimento exponencial dos estudos sobre DNA antigo.
O laboratório de Reich é responsável por três quartos dos dados publicados sobre DNA pré-histórico. Incluindo os dados ainda não publicados, seu grupo já analisou mais de 3,7 mil genomas. “Todas as vezes que damos um salto no número de indivíduos, conseguimos responder perguntas que nem mesmo tínhamos sido capazes de fazer anteriormente”, disse Reich.