De manhã, o cheiro do pão italiano quentinho vai impregnando as ruas do Bexiga, na Bela Vista, região central de São Paulo. Clientes locais, gente que veio de longe e até turistas são guiados pelo aroma e pela promessa de uma bela mordida na tradição – que também pode vir recheada com linguiça e provolone.
Por lá, há quatro padarias italianas que ultrapassaram os 100 anos: Italianinha (fundada em 1896), 14 de Julho (1897), São Domingos (1913) e Basilicata (1914). Com boa vontade (e desejo de queimar as calorias conquistadas nos próprios estabelecimentos em questão) é até possível fazer um circuito a pé para conhecê-las. Hoje, todas ostentam uma quarta geração de descendentes interessados nas próximas fornadas.
A história das padarias centenárias do bairro tem muitos pontos em comum. O primeiro, claro, é a imigração italiana. No início do século 19, diversas famílias recém-chegadas ao País foram morar na região. Na época, trouxeram para a cidade um hábito de sua terra natal – o de fazer pão em casa.
“Na Itália, cada família tinha um forno, girava sua massa e fazia o próprio pão por um mês. Depois, as famílias passavam seu fermento natural para o vizinho, que após produzir o seu pão também repassava o fermento para a próxima família”, contou Ângelo Agazio Lorenti, da quarta geração da família que está no comando da Basilicata.
O prazer de produção caseira veio antes da comercialização do produto. Como a quantidade produzida era grande, os pães eram compartilhados entre amigos e vizinhos. Depois, a crise econômica e a dificuldade de arrumar trabalho em outras áreas fizeram com que aquilo que era um hobby virasse profissão. Nos primeiros anos, as padarias do Bexiga faziam suas entregas em carroças, usando cavalos para levar os pães de casa em casa.
A mais antiga delas é a Italianinha, com quase 123 anos, que em seus primórdios se chamava Lucânia (mais conhecida hoje como região da Basilicata), terra natal do fundador, Felipe Poncio. Nos anos 1960, foi comprada por Rafaelli Franciulli e passou a se chamar Italianinha.
Naquele período, a padaria era muito maior – e estendia-se até a metade da Rua Rui Barbosa. Com o processo de urbanização do bairro, a Rui Barbosa foi alargada e boa parte da padaria, desapropriada. Hoje, a Italianinha ocupa o que era o depósito da padaria original. “Tenho muitos clientes que me conheceram quando eu era criança”, conta Sandra Franciulli, da quarta geração a trabalhar ali.
Como as outras padarias centenárias, a Italianinha fabrica pães respeitando o processo de fermentação natural, usando um forno tão velho quanto a própria padaria e uma receita que vem de longe. Além do italiano tradicional, a casa se destaca pelo pão recheado com linguiça calabresa e antepastos como sardela e alichela.
O irmão de Sandra, Alexandre Franciulli, é hoje o responsável por outra padaria centenária do bairro, a 14 de Julho. Fundada em 1897 por Rafaelli Franciulli (que anos mais tarde também seria dono da Lucânia/Italianinha). Originalmente, Franciulli trabalhava como mecânico em Santa Maria di Castellabate, na Itália, mas ao chegar ao Brasil notou que quase não existiam automóveis circulando pela cidade. “A saída dele foi abrir uma padaria”, contou o neto, Alexandre, da terceira geração.
O pai, Wilson Franciulli, foi quem cuidou da padaria por mais tempo – até que perdeu um braço em um acidente de trabalho. Depois do ocorrido, Rafaelli vendeu a padaria – que teve outros donos até ser recomprada pelo próprio Wilson. Hoje, Alexandre é quem toca o lugar e mantém a tradição familiar. Além dos pães italianos, o lugar é conhecido pela porchetta recheada. Ao lado da padaria, Alexandre abriu uma cantina com o mesmo nome.
À margem do viaduto que dá acesso à Avenida Radial Leste está a padaria São Domingos. Fundada em 1913 por Domenico Albanese, militar da Guarda Nacional Italiana. No início, Albanese percorria as ruas do bairro entregando pães com um carrocinha. Depois, estabeleceu-se no endereço onde a padaria existe até hoje. Detalhe: por muitos anos, Albanese e a família moraram nesse mesmo sobrado. “Nós estávamos aqui antes do viaduto. Tem na família quem conte que, por pressão e boa influência dos meus avós, a padaria não foi desapropriada na época da construção do viaduto”, conta Victor Albanese, 28 anos, da quarta geração.
Na São Domingos, os pães saem do mesmo forno desde a inauguração. O espaço também não mudou – continua charmoso e apertado (a expressão mais repetida pelos clientes é com licença). Além dos pães (com destaque para o recheado com calabresa), vale a pena beliscar um cannoli. Um dos clientes históricos da casa foi o músico Adoniran Barbosa (seria de lá o tal torresmo à milanesa cantado pelo compositor?).
Mais história
Por fim, a Basilicata. No início, o espaço que hoje tem um característica sofisticada (com produtos importados e restaurante) era um empório popular (do tipo que vende pasta de dente, vassoura…). O espaço era dividido com uma cocheira – lugar onde ficavam os cavalos usados na entrega dos pães. O lugar também era casa da família e abrigo para pessoas que saíam de sua terra natal para tentar a sorte no Brasil.
“Os padeiros e leiteiros tinham a chave de casa e entravam de madrugada para o trabalho. Eles entregavam pães para todos os casarões da Avenida Paulista”, conta Lorenti. “Os cavalos eram tão condicionados que, diz a lenda familiar, quando o entregador descia para bater na porta de alguém e entregar o pão, o cavalo já ia sozinho para a próxima residência – porque conhecia o itinerário.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.