Mudar para continuar o mesmo

Durante a Eco-92 no Rio de Janeiro sob forte pressão de autoridades do Vaticano presentes no evento tive que tomar, de imeditato, uma decisão dolorosa, a de deixar o ministério sacerdotal e me auto-promover ao estado de leigo. Não quis que um amigo soubesse da decisão pela imprensa. Procurei-o no hotel onde estava hospedado e lhe comuniquei pessoalmente o fato. Ele me olhou fundo nos olhos e me fez esta pergunta: mas você continuará o mesmo com a opção pelos pobres e por sua libertação? Respondi-lhe: sim, porque essa é uma opção de vida. Então, respondeu: tudo bem, o melhor do cristianismo está salvo. E me fez a seguinte observação: há momentos na vida em que para continuarmos os mesmos temos que mudar. Você teve a coragem de mudar, para continuar o mesmo de sempre.

Isso tudo foi-me dito pelo Comandante Fidel Castro Ruz. Essa frase nunca me saiu da cabeça e me inspira até os dias de hoje. Escrevi na época: troquei de trincheira mas não de luta; mudei de caminho mas não de direção. E volta e meia, a frase sábia de Fidel Castro, me vem à mente, a propósito das mudanças operadas no Presidente Lula e a cobrança de coerência dos assim chamados “radicais” do PT.

O Presidente Lula mudou, como reconheceu, porque a vida mudou. Antes estava na oposição agora está no poder central. E estar no poder central implica cuidar do todo e não só da parte, inspirado nas opções de base do partido e da coligão, atento sempre à realidade concreta. E esta é complexa, contraditória e exposta aos imponderáveis das políticas mundiais que não podem ser desconsideradas se quisermos sobreviver. Governar num quadro assim é mover-se numa realidade quântica, cheia de incertezas e virtualidades que cobram capacidade de resposta a conjunturas novas e flexibilidade para mudanças a fim de continuar na mesma direção, a de resgatar o Brasil.

A questão toda se resume no que entendemos por coerência. Coerência é a adequação entre teoria e prática, entre cabeça e mãos. Ocorre, porém, que entre cabeça e mãos não há uma passagem direta. Ao contrário, ambas, se encontram mergulhadas numa realidade complexa, onde atores e fatores não são controláveis por minha cabeça. Eles possuem sua lógica e força própria. Quem não os toma em conta, encurta a realidade ao tamanho de sua cabeça. Isso faz o fundamentalismo e todo o pensamento autoritário.

Importa introduzir uma mediação: o juizo prudencial e prático. Há que se fazer as mudanças, guardando a coerência com a cabeça mas considerando as forças em presença. A coerência dos “radicais” esquece essas forças e busca a adequação imediata entre cabeça e mãos. Vão ao confronto que pode bloquear tudo ou impor pela força seus propósitos. E ai adeus, democracia. Na seara, diz o Mestre, há joio e trigo. O “radical” diz: arranquemos o joio, porque ele não tem direito, não se importando se junto com ele se arranca também o trigo. É uma coerência direta, fria e desastrosa. A outra coerência, história e eficaz, diz: deixemos o joio e o trigo juntos, senão arrancaremos o trigo. Nosso dever, entretanto, é distinguir o joio do trigo, é denunciar o joio e reforçar o trigo. No momento oportuno vamos separá-los, cada qual com seu destino próprio.

O Presidente Lula mudou para continuar o mesmo. Por isso, não trocou de lado, apenas de trincheira na mesma luta.

Leonardo Boff

é teólogo, filósofo, escritor. Rede de Cristãos.

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