Morre em São Paulo o ator Raul Cortez

Morreu ontem, às 20h15, aos 74 anos, o ator Raul Cortez, no Hospital Sírio-Libanês, na capital paulista onde estava internado desde o dia 30, em função de complicações relacionadas a um câncer na região abdominal. Ainda esta noite seu corpo começou a ser velado no Teatro Municipal de São Paulo.

A carreira de Raul Cortez foi marcada por uma interessante conciliação entre facetas que costumam atritar-se. Conseguiu ser ao mesmo tempo artista ousado, meter-se em projetos libertários, e também engajado, mas também cultivar a imagem de artista do chamado `teatrão’ e fazer sucesso popular na televisão. Uma dessas conciliações ocorreu em 1980, quando a um só tempo ele brilhava, e recebia prêmios, no papel do velho militante de esquerda Manguary Pistolão da peça "Rasga Coração", de Vianninha recém-liberada pela censura, e era admirado por milhares de espectadores da novela "Água Viva", que vibravam com sua criação para o cirurgião plástico Miguel Fragonar.

De família rica, começou por contrariar os pais para ser ator. Fez uma `incompreendida’ atuação/performance em 1969, encarnando um travesti em "Os Monstros", sob direção de Denoir de Oliveira; em 1970, ousou com o primeiro nu masculino no teatro brasileiro na montagem de "O Balcão", dirigida por Victor García; atuou sob direção de Zé Celso no Oficina, tanto na sua primeira fase áurea na década de 60, em montagens antológicas como "Os Pequenos Burgueses", quanto na volta do diretor exilado, num Oficina destroçado, em "As Boas", de Jean Genet.

Também atuou mais de uma vez sob direção de Antunes Filho, em peças como "Quem Tem Medo de Virgínia Woolf?", interpretação que lhe valeu os prêmios Molière, Mambembe, APCA e Apetesp, e Vereda da Salvação. Nunca escondeu sua admiração inconteste, jamais abalada, por esses dois diretores expoentes do teatro brasileiro de linguagens tão díspares. Com muitos prêmios no currículo, depois de ter imprimido seu nome definitivamente na história do teatro brasileiro, decidiu fazer o `seu’ Rei Lear, ambição comum à carreira dos grandes atores. Mas também ousou levar ao seu público a dramaturgia contestadora de Mario Bortolotto, mantendo a dualidade, e a inquietação, que seriam marcas de sua vida artística.

Raul Christiano Machado Cortez nasceu no dia 28 de agosto de 1931, em Santo Amaro. Estudante de Direito, passou a freqüentar o Nick Bar, vizinho ao Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). Pouco depois, faria um teste para o TBC e seu talento começou a brilhar ao substituir Leonardo Villar no papel de Biff, em "A Morte do Caixeiro-Viajante".

Sob direção de Antunes atuou em "Yerma", de Lorca; sob a de Ziembinski, em "Boca de Ouro", de Nelson Rodrigues. Dizia gostar dos personagens loucos e lúcidos que se revoltam, como Joaquim de "Vereda da Salvação", mais um dos que criou sob direção de Antunes Filho. Foi um dos fundadores da Associação dos Produtores Teatrais do Estado de São Paulo (Apetesp), em 1974, e também seu presidente, durante muitos anos. Em 1979, quando estreou em "Rasga Coração", de Vianninha, tinha 48 anos e uma carreira repleta de prêmios teatrais. Havia levado ao palco personagens de Edward Albee, Molière, Lorca, Jean Genet, Gorki, Nelson Rodrigues, Jorge Andrade e muitos outros.

Sua popularidade na telinha explodiu na novela "Água Viva", sua primeira na Globo. Com Geremias Berdinazzi de "O Rei do Gado", chegaria a roubar o lugar do protagonista no gosto do público. Sucesso televisivo, no seu caso, não significou interrupção nos palcos. Em 1986, novamente sob direção de Antunes, faria "A Hora e a Vez de Augusto Matraga", inspirado em Guimarães Rosa. E muito mais. Ele seria o Paulo Prado de "O Lobo de Ray-Ban", "Rei Lear" e ainda se arriscaria em "À Meia-Noite Um Solo de Sax na Minha Cabeça" e "Fica Frio", duas peças de Bortolotto que levaria ao palco, expondo-se corajosamente ao fogo cruzado da crítica tanto de seu público mais tradicional quanto dos admiradores do autor aplaudido, sobretudo, pelo espectador arredio ao circuito dos teatros de veludo vermelho e poltronas confortáveis. Nesse momento, quando muitos de sua geração levavam ao palco confortáveis solos no estilo `balanço de carreira’, Raul Cortez mostrava jamais ter deixado morrer a chama do jovem rebelde que contrariou a família para tornar mais interessante o teatro brasileiro.

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