A cobrança de “aluguel” em invasões, apontada como achaque e exploração de quem já não tem quase nada, será agora investigada em toda a cidade pela Polícia Civil. A suspeita é de que grupos se associaram para obter benefícios à margem do poder público. As denúncias de moradores sobre essas “taxas” aumentaram com o avanço das invasões em São Paulo nos últimos anos e ganharam atenção após a queda do Edifício Wilton Paes de Almeida, na terça-feira passada, dia 1º.
O inquérito foi instaurado pelo Departamento de Investigações Criminais (Deic), segundo o secretário da Segurança Pública, Mágino Alves Barbosa. “É para apurar cobranças. Vamos investigar as associações e não os movimentos que promovem as ocupações. Vamos investigar associações que exploram moradores das ocupações”, afirma. A União, proprietária do imóvel que desabou, também pediu à Polícia Federal que investigue a cobrança de eventuais taxas de “aluguel” dos sem-teto.
Em outras invasões, a prática de “aluguel” para sem-teto já foi enquadrada pela Polícia Civil como extorsão, com pena prevista de 4 a 10 anos de reclusão. A cobrança de taxas em ocupações, como o jornal O Estado de S. Paulo mostrou nesta quinta-feira, 3, não é fato isolado. “Custa R$ 200 na Ocupação Rio Branco, o que cobre porteiro 24 horas e despesas de manutenção”, diz Jilmara Abreu Pires da Fonseca, de 60 anos, coordenadora da Frente de Luta por Moradia (FLM). Os movimentos justificam a cobrança para arcar com despesas jurídicas, de limpeza, segurança e manutenção. Sobreviventes do prédio que desabou dizem, porém, que o “resultado” não era visível.
Ex-morador do 4.º andar, o aposentado Miguel Angelo Vargas, de 57 anos, diz que a ocupação do Edifício Wilton Paes de Almeida, que ruiu na terça-feira no centro de São Paulo, foi “a pior” de todas em que já esteve. Além de só ter água fria e nenhum banheiro, ele viu o “aluguel” de um espaço no 4.º andar passar de R$ 100 para R$ 300 em oito anos. E qualquer atraso superior a cinco dias rendia “despejo” imediato.
Entre os desabrigados diante da Igreja Nossa Senhora do Rosário, no Largo do Paiçandu, Vargas é um dos poucos que aceitam falar sobre o assunto. Por mês, a taxa desembolsada pelo aposentado era de R$ 310 – R$ 10 seria para limpeza e o restante, para a mensalidade. “Estava pagando R$ 210 em um quarto, mas era muito abafado. Passei para um quarto mais ventilado, então comecei a pagar R$ 310”, afirma. “Não tinha banheiro nos quartos. E nos banheiros também não tinha privada, só um buraco. No chuveiro, era só água fria. A água vinha pouco e logo parava. Se o pessoal esquentava água para tomar banho, acabava a luz. A energia, a gente puxava do semáforo, então não tinha força.”
Antes de ir para o Wilton Paes de Almeida, ele tentou alugar um barraco em uma favela, mas alega que o valor era impossível de pagar: R$ 400. Segundo o Conselho Regional de Corretores de Imóveis, um apartamento na região central não tem aluguel inferior a R$ 500, para uma área de cerca de 35 m². Na região, um metro quadrado alugado sai por cerca de R$ 17 (ainda assim, metade da média da capital). Vargas, no entanto, sobrevive com um salário mínimo por mês, valor de um benefício por invalidez.
Até esta quinta, a Prefeitura e o Estado haviam cadastrado 56 famílias do imóvel que desabou para receber por 12 meses, a partir desta sexta-feira, 4, auxílio-moradia de R$ 400. Bem mais do que alguns moradores pagavam para ficar ali – cerca de R$ 100. Era o caso da doméstica Neuza Cavalcante, de 55 anos, que morava com um filho de 15. “No meu quarto, caía muita água. Eu tinha medo de inundar.” Além da falta de recursos, a necessidade de documentação – sobretudo no caso de estrangeiros – e de fiador dificultavam as opções para quem pretendia residir nas imediações.
Segundo a manicure Keliane Mendes, de 34 anos, o valor pago no Largo do Paiçandu, de até R$ 350, dependia da quantidade de pessoas por cômodo. Outro critério para a definição da taxa incluía até a amizade com os líderes. Mas a falta de condições de segurança no prédio levantou, até entre os residentes, insinuações de que a “taxa” não seria devidamente utilizada.
Mesmo sentimento teve a psicóloga Cássia Fellet, que visitou uma ocupação do Movimento de Luta Social por Moradia (MLSM), grupo responsável pela invasão no prédio, entre o fim de 2015 e o início de 2016, para o mestrado. Ela recorda que não havia “ação coletiva” entre os moradores, como mutirões de limpeza ou assembleias típicas de outras ocupações. “Eu tive certeza de que aquilo não era um movimento por moradia.”
Investigação
Um trabalho da Polícia Civil será identificar se há uma organização criminosa por trás da cobrança. Era o que acontecia, por exemplo, no Edifício Cine Marrocos, também no centro, alvo de invasão do Movimento Sem Teto de São Paulo (MSTS): um grupo de “fachada”, a serviço do Primeiro Comando da Capital (PCC).
Em agosto de 2016, uma ação policial ligou os líderes do MSTS ao tráfico de drogas e ao “desvio” de aluguel, então de R$ 200. A polícia, porém, não tem informação de que isso ocorria na Wilton Paes.
Segundo ex-moradores, dois homens eram responsáveis pela ocupação – Ananias Pereira dos Santos, o Nil, e Hamilton Resende -, que deixariam carros caros estacionados na garagem do prédio. Desde a tragédia, não apareceram para dar assistência aos desabrigados. Uma aliada alegou que estão preocupados com “as denúncias de aluguel”. Ananias e Hamilton são investigados pelo Ministério Público por achaque em ocupações em 2015. No ano seguinte, o MP recomendou e a polícia abriu inquérito por extorsão. O processo corre em segredo de Justiça.
Outro dos chefes do movimento é Ricardo Luciano. Ele nega o pagamento de mensalidade e fala em “taxa” de R$ 86 de manutenção – por família. “Ananias é um herói. Tira dinheiro do seu bolso para ajudar as famílias.” Segundo ele, o líder, que seria dono de barracas comerciais no Brás e Santa Ifigênia, teria morado em outras ocupações. “Sempre foi um dos nossos. Vivia em ocupação. Depois disso, ele teve condições de passar para o nosso lado e ajudar.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.