Um “mandado coletivo de busca e apreensão” é inconstitucional, afirmam juristas. A medida para atuar durante a intervenção na área de Segurança Pública do Rio foi um pedido do comandante do Exército, general Eduardo Dias da Costa Villas Bôas, ao governo federal.

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“No lugar de você dizer rua tal, número tal, você vai dizer, digamos, uma rua inteira, uma área ou um bairro”, justificou o ministro da Defesa, Raul Jungmann.

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O conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em São Paulo, Frederico Crissiuma de Figueiredo, afirma que “mandados de busca e apreensão coletivos são inconstitucionais”. Para o criminalista, a medida “atenta contra os diretos constitucionais à privacidade, à dignidade e à inviolabilidade dos domicílios”.

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“Mesmo numa situação de intervenção federal, tais garantias não podem, no meu entender, ser afastadas. Se há necessidade de busca e apreensão, ela deve ser demonstrada individualmente, indicando-se as fundadas suspeitas que justifiquem a medida. Nossos tribunais já se manifestaram a respeito e comungam do mesmo entendimento”, afirma.

“Ainda que estejamos vivendo um momento delicado em termos de criminalidade, não se pode afastar a incidência da Constituição Federal e dos direitos ali assegurados a todos os cidadãos, inclusive daqueles que vivem em comunidades pobres e conflagradas”.

O advogado criminalista Fernando Gardinali, do escritório Andre Kehdi & Renato Vieira Advogados, afirma que “não há cabimento jurídico nem fundamentação legal” para o pedido de mandados coletivos de busca. O criminalista destaca uma decisão do Tribunal de Justiça que já anulou a medida.

Em 2016, a Polícia Civil fez representação para expedição de mandados de busca coletivos em locais genéricos. O pedido foi deferido em primeira instância, mas, posteriormente, o Tribunal anulou a decisão.

“O Código de Processo Penal define claramente que o mandado de busca deve “indicar, o mais precisamente possível, a casa em que será realizada a diligência e o nome do respectivo proprietário ou morador”. Um mandado coletivo fere a garantia constitucional da inviolabilidade do domicílio. Ainda mais afrontosa é a ideia de mandados de prisão coletivos”, afirma.

“Não há sequer como se imaginar qual argumento seria utilizado para se formular tal pedido. A prisão cautelar é a medida mais extrema e mais gravosa prevista em nossa legislação e, portanto, deve ser a que demanda mais cautela em sua análise. Impossível se cogitar em um mandado coletivo de prisão; seria uma gravíssima ofensa às garantias constitucionais básicas da dignidade da pessoa humana e da própria legalidade.”

Segundo o criminalista, “o governo federal não tem legitimidade para requerer isso em juízo”.

“Ainda que o Exército atue na função de policiamento, ele não substitui o papel de polícia judiciária, exercido pela Polícia Civil. Portanto, só a Polícia Civil ou o Ministério Público do Rio de Janeiro poderiam formular esse pedido em juízo. O Exército não tem qualquer ingerência sobre isso. A intervenção federal não altera nenhuma regra legal de legitimidade processual para a representação em juízo por uma medida cautelar de busca e apreensão ou de prisão”, diz.

Para o professor de Direito Penal da Faculdade do IDP-São Paulo João Paulo Martinelli, o Tribunal de Justiça do Rio “já anulou esses mandados em operações anteriores”. O advogado criminalista destaca que “a intervenção federal não autoriza a utilização de medidas ilegais, sem previsão em lei”.

“O mandado deve individualizar o local a ser averiguado pela autoridade”, argumenta. “O mandado coletivo parte do pressuposto de que as pessoas de determinada área são criminosas e, por isso, o Estado poderia invadir suas residências em busca de armas, drogas e pessoas procuradas. Há um conflito de interesses: segurança pública e direito fundamental à inviolabilidade de domicílio.”

João Paulo Martinelli também ressalta a decisão do Tribunal de Justiça do Rio.

“Eu sou contrário a esse tipo de medida, pois isso autoriza a invasão de qualquer residência ou estabelecimento de uma região, incentiva o abuso de autoridade, estigmatiza os moradores das áreas periféricas, além de ser ilegal, pois não há previsão em lei”, diz Martinelli.

O criminalista João Rossi, do Nelson Wilians e Advogados Associados, destaca que “a busca e apreensão judicial é sempre pessoal ou domiciliar (art. 240, do Código de Processo Penal)”.

“É elemento vital do mandado a indicação da ‘casa em que será realizada a diligência e o nome do respectivo proprietário ou morador’, da forma mais precisa possível (art. 243, inciso I, do mesmo código). Encontra-se aqui o primeiro entrave legal: se a busca e apreensão de pessoas é permitida apenas em domicílios e de forma mais pormenorizada possível, como seria possível tal medida em bairros? Não há qualquer fundamento legal”, argumenta.

Rossi reforça que o Tribunal do Rio de Janeiro já afirmou ser inconstitucional e ilegal tal medida.

“É o caso da busca e apreensão na Cidade de Deus, considerada ilegal no habeas corpus nº 0061167-57.2016.8.19.0000, e o caso de igual medida para as favelas de Jacarezinho, Manguinhos, Mandela Bandeira 2 e Conjunto Habitacional Morar Carioca/Triagem, que foi suspensa pelo Habeas Corpus nº 0220241-13.2017.8.19.0001”, diz o advogado.

“As razões do judiciário para considerarem ilegais e suspenderem tais medidas coletivas são homogêneas e claras: a indicação de casa é requisito legal, não podendo ser suprimido e a medida em questão não pode constituir uma autorização genérica, sob pena de subversão total de sua lógica e, ainda, de delegação à autoridade policial não apenas da executoriedade do ato, mas da própria delimitação de seu objeto. Nota-se que os mandados coletivos de busca e apreensão podem trazer consequências ainda mais catastróficas, pois, afinal, se o ato é ilegal e inconstitucional, tudo que é fruto deste ato possui vício e não pode ser usado. O trabalho e dinheiro público investido perdem-se.”

A advogada Vera Chemim, discorda. Para a constitucionalista, a questão que envolve a aplicação de mandados coletivos de busca e apreensão, numa conjuntura de “crise constitucional”, caracterizada no caso atual, por uma “intervenção federal” na área da segurança pública, é perfeitamente constitucional e legal, desde que respeite os limites previstos na Constituição brasileira.

“Nessa direção, tais mandados remetem às chamadas ‘medidas coercitivas’ legal e constitucionalmente previstas, desde que atendam aos preceitos estabelecidos no artigo 5º, incisos XI e LXI, da Carta Magna que protegem o direito fundamental de ir e vir”, explica.

“O inciso XI trata da busca e apreensão em domicílio. No entanto, a justificativa do Ministro da Defesa é de que as pessoas não necessariamente estarão em suas casas e, portanto, elas terão que ser abordadas em bairros e ruas do Rio de Janeiro. Por sua vez, o inciso LXI prevê que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária.”

Para a advogada, as medidas coercitivas de modo geral e, especificamente as de busca e apreensão ou eventualmente de prisão, são constitucionalmente previstas num contexto de crise constitucional, tais como: o estado de defesa, de sítio e, por analogia, a intervenção federal, nos artigos 136, 137 e 139, da Constituição Federal, que disciplinam aquelas anormalidades de natureza constitucional, especialmente a defesa da sociedade, por meio das Forças Armadas em conjunto com a Polícia Militar estadual, no resgate da Segurança Pública.

“Desde que os mandados tenham autorização judiciária e sejam devidamente fundamentados, eles poderão ser aplicados. Caso contrário, tanto o interventor, quanto o ministro da Defesa e o próprio presidente da República correrão o risco de serem responsabilizados por abuso de poder ou cometimento de ato ilegal, casos em que o Poder Judiciário poderá ser demandado por ajuizamento de Mandado de Segurança ou Habeas Corpus, remédios constitucionais previstos para tais fins. Trata-se do chamado controle jurisdicional concomitante à intervenção federal”, diz.