Carnaval é aquela festa na qual empregado usa roupa de patrão, homem se fantasia de mulher, branco se veste como índio, certo? Não mais. Assim como o lança-perfume, antes fartamente consumido durante o reinado de Momo e atualmente proibido, também as fantasias de índio, rastafari, nega maluca, mulher, padre e outras vão acabar, se depender de campanhas lançadas ou retomadas neste carnaval. Recomendações de retirada foram feitas, por exemplo, por órgãos oficiais de Belo Horizonte e do Ceará.

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O debate não é novo. Da marchinha É Proibido Proibir à música Proibido o Carnaval, de Daniela Mercury, as discussões sobre o que pode ou não no carnaval variam de época a época. Podem atingir as letras: hoje marcas do século passado como Cabeleira do Zezé, Mulata Bossa Nova e Índio Quer Apito acabaram praticamente banidas do repertório.

Agora, o foco são fantasias e acessórios – quase um século após o pioneiro João da Baiana ser preso por vadiagem, só por andar com pandeiro na rua. E não há tanto consenso.

A polêmica sobre fantasias de índio começou em 2017 e foi retomada agora, antes mesmo do feriado. No primeiro domingo da folia em São Paulo, dia 16, a atriz Alessandra Negrini desfilou no bloco Acadêmicos do Baixo Augusta, do qual é rainha há sete anos, com cocar e pintura corporal com referências aos povos indígenas.

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Nas redes sociais, foi acusada de apropriação cultural – usar símbolos indígenas, como adereços, para se autopromover e ganhar visibilidade. A atriz nega. “A luta indígena é de todos nós e por isso eu tive a ousadia de me vestir assim”, justificou-se depois.

Em meio à retomada das críticas às fantasias de índio, internautas elegeram o bloco Cacique de Ramos como novo alvo. O grupo desfila no Rio desde 1961 e se divide em alas com fantasias indígenas, como Apache, Tamoio, Cheyenne e Família Carajás.

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“Tanta fantasia boa para inventar e a galera insistindo nesses rolês racistas”, escreveu no Twitter uma internauta. “Tem gente do movimento indígena falando sobre como é desrespeitoso com a cultura deles e sobre como esse reforço ao estereótipo é parte de um projeto de apagamento étnico.”

Em nota, o bloco se defendeu e disse respeitar “o debate identitário”. “No entanto, pedimos licença para falar da nossa trajetória. Os pioneiros do bloco possuíam nomes indígenas e eram ligados à umbanda. A agremiação nunca perdeu de vista o componente religioso no seu dia a dia nem suas referências desde a fundação.”

O presidente é Ubirajara Félix do Nascimento, Bira Presidente, de 83 anos, que criou o bloco com os irmãos Ubiraci e Ubirani e membros de mais duas famílias.

Figurinos

O carnaval sempre foi elemento de exposição da africanidade – praticamente todas as escolas de Rio e São Paulo, por exemplo, têm um detalhe afro em enredo e adereços. Mas a liberdade de uso cultural está em discussão aberta. Na capital mineira, o Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial divulgou no dia 13 a cartilha Nota de Orientação para Práticas Não Racistas no Carnaval, com sete itens. O primeiro critica marchinhas que “perpetuam o racismo velado em expressões de bestialização e hipersexualização do corpo negro”, como as já citadas.

O segundo item critica o blackface, técnica teatral usada para pintar pessoas brancas como negras. “O Blackface carrega a simbologia do apartheid e no Brasil não deve ser confundido com homenagem”, diz a cartilha.

O texto também critica o uso de perucas “black power” ou “nega maluca”, dreadlocks e touca com tranças, que se “traduzem como desrespeito aos símbolos da resistência negra”. Trajar-se como índio ou cigano também é desrespeitoso, diz o material.

Homem vestido de mulher, então, nem pensar: é atitude machista, desrespeitosa com as mulheres e preconceituosa contra as pessoas trans.

No Ceará, a Defensoria Pública criou quatro cartazes de alerta contra as mesmas fantasias criticadas pelo órgão municipal mineiro. “As vestes de padres, pastores, judeus e muçulmanos representam costumes, tradições e crenças”, explica um deles. Homem vestido de mulher é atacado em outro: “Não reforce estereótipos de gênero com seu preconceito”, alerta.

Renata Spallicci, rainha de bateria da escola paulistana Barroca Zona Sul, chegou a fazer publicação nas redes sociais com acessórios remetendo a uma escrava este ano. Criticada, apagou tudo e se desculpou. Em 2019, a Gaviões foi amplamente criticada por fazer alusão religiosa em seu desfile – com o Diabo vencendo Jesus – e foi acionada judicialmente.

Foliões

Entre especialistas e frequentadores da folia, as opiniões são divididas. “Tenho filho pequeno e não permito que ele cante marchinhas como Cabeleira do Zezé e Maria Sapatão”, conta a advogada paulistana Maria Elisa Pereira, de 38 anos. “É mais uma agressão aos gays, que já são tão discriminados”, avalia.

Mas ela não concorda que todas as fantasias sejam abolidas. “Já fantasiei meu filho de índio e de cigano, e não vejo desrespeito a esses povos. Para mim é até homenagem.”

Na mesma linha, o analista financeiro Leandro Athaíde, de 28 anos, foi de cocar indígena e um grande acessório de pescoço de penas coloridas a um bloco de São Paulo. “Tem de usar, tem de mostrar.”

A designer de interiores Mariana Gibran, de 44 anos, condena fantasias que erotizam o corpo da mulher ou estimulam o machismo. “Já me fantasiei de gata, e hoje não repetiria. É uma forma de erotizar o corpo da mulher, e isso é descabido. Mas não tinha essa consciência naquela época”, admite.

“Quando essa apropriação cultural é feita de forma consciente, autorizada, de forma que denuncie alguma questão que está sendo violada, acho justo o uso de fantasias e adereços para que se levante o debate”, diz Sérgio Barbosa, professor de Sociologia da Universidade Estácio de Sá. “Agora, quando isso é feito somente para o uso da imagem, sem relação com a realidade, na verdade se torna um grande deboche”, afirma. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.